Qual o Papel da Filosofia na Sociedade Contemporânea?

 

O Debate Rorty & Habermas

O papel da Filosofia na sociedade contemporânea é um dos mais instigantes temas nos debates travados entre dois importantes filósofos de nosso tempo: o norte-americano Richard Rorty (1931-2007) e o alemão Jürgen Habermas (1929-).

Richard Rorty, em seu livro A Filosofia e o espelho da natureza, defende o ponto de vista de que, afastada a idéia de que a Filosofia pretenda ainda buscar refletir acuradamente as verdades existentes na natureza – a filosofia sem espelhos, nas palavras do autor –, deva-se abandonar também a noção de filósofo como sendo alguém que detenha conhecimentos privilegiados sobre as coisas, como sendo alguém que pretenda possuir uma voz dominante sobre os participantes em uma conversação. Refuta Rorty, a idéia de que a Filosofia se coloque e se veja como um ramo de conhecimento acima de todos os outros, capaz de julgá-los e direcioná-los.

Jürgen Habermas, por sua vez, em Conciencia Moral y Acción Comunicativa, reconhece a relevância dos argumentos críticos de Rorty sobre o papel da Filosofia como “Juiz”, atribuído a ela por Immanuel Kant (1724-1804). Discorda, contudo, da possível conclusão que se possa extrair da crítica de Rorty: de que a Filosofia deva abandonar a posição de “guardiã da racionalidade”. Habermas discorda deste ponto argumentando que a Filosofia teria surgido exatamente como uma forma de pretensão à razão, um caminho em direção ao esclarecimento, às luzes. A posição de Habermas no debate é de que a Filosofia abandone o papel de juiz que fiscaliza a cultura, em prol uma postura de intérprete-mediador no debate com as demais esferas culturais – ciência, moral e arte. Habermas entende que a filosofia já não pode mais se apresentar como tendo a chave para solucionar o enigma do mundo.O Filósofo alemão enxerga na postura de seu debatedor (Rorty), um possível risco de esvaziamento do papel da Filosofia, uma espécie de redução de sua importância.

Habermas, assim como outros críticos do Filósofo norte-americano, parece entender que Richard Rorty queira defender o esgotamento da Filosofia e de seu papel na sociedade,  e suspeitam que defenda sua substituição por outros ramos de conhecimento, por exemplo pela Literatura, como orientadores dos valores de nossa vida em comum.

Não é esta, de fato, a posição de Richard Rorty. O filósofo norte-americano, ao contrário, argumenta que a Filosofia necessita recuperar seu importante papel na construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.A perspectiva de Rorty quanto ao futuro da Filosofia não é de defender o seu fim ou sua substituição pela Literatura, Arte ou Política, como as principais orientadoras dos rumos da humanidade. O Filósofo norte-americano defende sim a continuidade da Filosofia e seu importante papel na construção de uma sociedade democrática e com oportunidades para todos.

O que Richard Rorty preconiza é o abandono das discussões em torno de algumas questões até aqui tidas como centrais para a Filosofia. É o caso do debate em torno no conceito de Verdade, a insistência na necessidade em uma teoria filosófica acerca do Conhecimento Humano (Epistemologia), a busca da Filosofia por “representar acuradamente a Realidade” (daí a metáfora estampada no mais conhecido livro de Rorty: A Filosofia e o espelho da natureza). Como estes todos são temas bastante caros à Filosofia, aos Cursos de Filosofia em especial, a perspectiva do Pensador norte-americano causa certo incômodo.

Rorty, ao preconizar a substituição do debate filosófico em torno de questões como Mente, Verdade, Substância, Natureza Humana, Representação acurada da Realidade, por temas como Liberdade, Democracia, Alteridade e Ética, propõe também que se deixe de lado a preocupação em explicar como somos, o que somos e de onde viemos, isto é, a preocupação em olhar para o passado, para centrar a atenção em como podemos ser, em como podemos abastecer nossa vida em comum com mais alteridade e tolerância, ou seja, um olhar para o futuro.

Deste debate, cujas posições são menos antagônicas do que parecem, resulta uma conclusão inevitável: a Filosofia é apenas um dos ramos do conhecimento humano. É apenas uma das esferas do universo cultural construído pelo ser humano para ajudar a explicar o mundo que o cerca.  Assim compreendida a Filosofia – como sendo uma entre as diversas formas de manifestação cultural do complexo e multifacetado ser humano -, torna-se evidente que seu papel na sociedade contemporânea é apenas o de um participante em um debate entre distintas e complementares áreas de conhecimento.

Talvez a posição de Jürgen Habermas de que a Filosofia sirva de intérprete-mediadora neste debate ainda seja de alguma forma pretensiosa, reivindicando para ela a manutenção de lugar privilegiado entre as demais áreas de conhecimento. O lugar da Filosofia no debate pode ser de destaque, mas não deve pretender privilégios. Talvez a Filosofia ainda se sinta de alguma forma incomodada com a emancipação de Ciências que dela se originaram – Sociologia, Psicologia, Antropologia Social, entre outras, além das ciências da natureza como a Física, a Biologia etc.

Entretanto, é necessário reconhecer que outros ramos do conhecimento humano podem, também, por seus próprios méritos, aspirar a um lugar de destaque no grande debate. O papel de cada área do conhecimento humano nesta arena é ao mesmo tempo singelo e complexo: colaborar na construção de uma sociedade mais justa e equilibrada. Não é diferente, portanto, o papel da Filosofia na sociedade contemporânea, e a força de sua tradição a impede de recusá-lo.

Cabe então à própria Filosofia, representada pelos Filósofos, pelas Faculdades, pelos Cursos de Filosofia, por seus Professores e aficionados, portanto, decidir qual seu papel: ficar distante da sociedade, enclausurada de forma hermética na Academia ou reassumir seu papel de crítica da realidade e orientadora da construção de uma Sociedade de maior igualdade e de mais oportunidades para todos, juntamente, de mãos dadas, com outros ramos de conhecimento humano.

Marcelo Lorence Fraga

Mestre em Filosofia

 BIBLIOGRAFIA BÁSICA

CORBISIER. Roland. Introdução à Filosofia. Tomo I: Problemática da Introdução à Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

GHIRALDELLI Jr, Paulo. Neopragmatismo e Verdade: Rorty em conversação com Habermas. In Utopia y Praxis Latinoamericana, v.10 n.29 Maracaibo 2005. ISSN 1315-5216 .

HABERMAS, Jürgen. Conciencia Moral y Acción Comunicativa. 5. ed. Barcelona: Península, 1998.

RORTY, Richard. A Filosofia e o espelho da natureza. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

_____________. Habermas y Lyotard sobre la posmodernidad. In Habermas y la modernidad. Tercera edicion. Coletânea de textos organizada por Richard J. Bernstein. Madrid: Catedra, 1994.

SOUZA, José Crisóstomo de (Org.).  Filosofia, racionalidade, democracia: os debates Rorty & Habermas. São Paulo: UNESP, 2005.

Filósofo e Sociólogo Alemão

Jürgen Habermas

Filósofo Neo-pragmatista Norte-americano

Richard Rorty

8 opiniões sobre “Qual o Papel da Filosofia na Sociedade Contemporânea?

  1. Um Deleite!
    É impossível ler esse Ensaio e não parar para refletir a respeito do tema. O Debate Rorty & Habermas possui posições realmente menos opostas do que pensamos, ao iniciarmos a leitura. A Filosofia é apenas um dos ramos do conhecimento humano. Fato. Porém, sua história e seu estudo quanto à Verdade, à Mente, à Natureza Humana… nos serve, indiscutivelmente, de alicerce. É importante o refletir sobre o que somos, quem somos, de onde viemos… mas não pode ser apenas isso, nesse ponto concordo com Rorty. Mas, acredito que o ideal seria o equilíbrio. Acredito que é possível melhorar o como podemos ser (o olhar para o futuro), sem nos perder do que fomos (do que foi construído no passado). A Filosofia como intérprete-mediadora sem privilégios, assim colocou Habermas, de conhecimentos distintos que hoje nos são complementares. Aí,coloco-me ao lado do filósofo alemão. Equilíbrio. Eis o ponto. Rorty & Habermas: A Sociedade clama por isso! Será que dá? Debate, deveras, instigante. Dá até vontade de ler mais!

    • Querida Vanna, sempre com observações argutas e bem colocadas. O debate (a conversação, talvez) Rorty & Habermas é um dos mais ricos e instigantes da Filosofia e do Pensamento contemporâneo. Uma lástima que Richard Rorty nos deixou apenas com seus Escritos, desde 2007. Para mim, o pensamento de Rorty & de Habermas representa nada mais, nada menos, do que a Esperança. Esperança na Humanidade, esperança na Razão. Representam, talvez, Rorty & Habermas, a própria esperança na Esperança. Não é à toa que este segundo Ensaio tangencia o Pensamento destes dos Filósofos, dos quais sou, humildemente, tributário.

      Abraço Muito Grande! Obrigado por suas importantes considerações! Seja, Vanna, muitíssimo bem-vinda!

      Marcelo

  2. Meu caro Marcelo, há diversas maneiras de estabelecer contato com o mundo. Dentre elas, o mito, a religião, a arte, a ciência, a filosofia e até o senso comum. Penso que tais abordagens não devem ser excludentes. Uma pessoa religiosa pode recorrer à filosofia para explicar racionalmente os dados da sua crença, assim como um cientista usa o senso comum no seu cotidiano ou um artista vale-se da ciência para elaborar seu objeto de criação. Ao limitarmos nossa leitura do mundo a apenas uma forma de conhecimento, reduzimos substancialmente nossa experiência. Lembremos o caso da ciência que de especializa e observa “recortes” do real. Sua tendência é excluir outras abordagens importantes como intuições, crenças, emoções e afetividade. Embora não reivindique um lugar privilegiado para a filosofia, creio que ela desempenha importante papel de conexão, ao refletir sobre fundamentos e valores. Para mim, ao contrário das outras área de conhecimento, a filosofia não se restringe a mero exercício intelectual. Ao questionar e desvelar a ideologia, ela desfaz formas estagnadas de poder e projeta mudanças.

    • Querida Maizé, excelentes considerações. Concordo plenamente com elas todas. É neste sentido que Richard Rorty leva sua perspectiva adiante. A Filosofia, para ele, é apenas mais uma das tantas áreas de conhecimento humano. Rorty defende ardentemente o debate da Filosofia com todas estas demais esferas da “vida humana associada”, como ele denomina. É interessante notar, não obstante, que o pensamento de Rorty está fortemente calcado numa visão Naturalista e Evolucionista de ser humano. Rorty possui uma vinculação muito bem definida com o Darwinismo, naquilo que ele mesmo define (não originalmente) de “bípede sem penas”, isto é, o ser humano como produto biológico. O “namoro” de Rorty com Heidegger, todavia, denota sua abertura para outras tantas esferas de conhecimento e reconhecimento humanos. Richard Rorty se caracterizou, em sua trajetória filosófica, pela capacidade de diálogo e conversação com outras tantas esferas e ramos de conhecimento. Isto lhe custou, de certa maneira, uma espécie de descaso ou desconsideração nos meios mais restritos ou conservadores da própria Filosofia. Rorty pagou um preço, caro demais talvez, por sua abertura, por tentar romper alguns enclaves (rançosos?) da Filosofia, especialmente da Filosofia acadêmica. O que o pensamento de Rorty parece refletir é uma espécie de “cansaço” em relação ao insistir da Filosofia em alguns temas ou pontos de vista já desgastados (para ele). Ao defender a participação de outras esferas de conhecimento no debate sobre a construção de uma sociedade mais justa e tolerante, inclusive da própria Literatura, por exemplo, Rorty sem dúvida amplia o escopo de possibilidades de compreensão do humano. Todavia, é importante considerar que Richard Rorty é vinculado à corrente do neo-pragmatismo (talvez mesmo seu principal defensor), herança revigorada do pensamento de William James e John Dewey. O espaço para o prático, o útil (na linguagem do próprio Rorty e dos seus antecessores pragmatistas) é maior do que para as especulações metafísicas. Mas Rorty, ao beber também na fonte da Filosofia Continental (em geral, pensadores franceses e germânicos), como em Heidegger ou em Wittgenstein, ou mesmo em Derrida, demonstra sua aptidão para o diálogo com várias e distintas correntes de pensamento. Todavia, este diálogo, esta abertura a que Rorty se propõe é sempre em direção ao futuro, a quem podemos ser, e muito pouco no sentido de ainda buscarmos compreender quem somos, de onde viemos, por qual razão estamos aqui. Estas inquietações, para Rorty, já possuem elementos suficientes para sua resolução. Resolução numa perspectiva pragmatista (isto é muito importante!) evidentemente. Não que estas questões já estejam plenamente, cabalmente equacionadas, do ponto de vista teórico. Não. Mas apenas que não vale mais a pena discuti-las, estão ultrapassadas. Melhor, para ele (Rorty), é olhar para frente. Já estaríamos suficientemente abastecidos de informações de quem somos. Precisamos agora é decidir, à luz do pensamento do Filósofo norte-americano, quem queremos ser, que sociedade deixaremos como legado para as gerações futuras. Rorty entende como o papel da Filosofia contemporânea, em conjunto com todas as outra Áreas, uma possibilidade de projeção de seres humanos melhorados. Uma espécie de versão melhor de nós mesmos. Mais tolerantes, mais compreensivos, mais justos, mais equânimes, mais dotados de capacidade de alteridade. O Pensador norte-americano chega mesmo a recorrer a Jefferson: “A mim não importa se meu vizinho crê e reza a um só deus ou a vários deuses. Importa a mim é seu comportamento e seu papel como Cidadão. Como elo importante da democracia”. Talvez aí a inspiração de Rorty na separação da esfera individual e coletiva (Habermas também distingue as duas esferas, a seu modo). Uma versão melhor de nós mesmos. Não mais para nós, mas para as gerações futuras. Richard Rorty guia seu carro olhando para a frente. Sempre atento ao espelho retrovisor, mas prioritariamente olhando para a frente.

      Muito obrigado, Maizé, pelas tuas importantes e pertinentes considerações! Venha sempre!

      Abraço Grande!

      Marcelo

      • Novamente brilhante, trazendo ao conhecimento de um leigo, (eu) que não se abstém de pensar, fontes onde burilar suas idéias. Concordo perfeitamente com a conclusão do teu ensaio e acredito firmemente que a postura filosófica de Rorty deveria ser prevalente. Especialmente na atualidade invadida por intolerâncias diversas. A mente,acredito, será desvendada pela biologia, medicina e outras que tratam do mundo físico.

      • Prezadíssimo Paulo Braun, muito obrigado! O que você coloca faz exatamente parte do projeto neo-pragmatista de Rorty, isto é, outras áreas de conhecimento foram se especializando e se tornando mais competentes e adequadas para o tratamento de algumas questões específicas, especialmente estas de compreensão dos fenômenos biológicos e psíquicos. A Filosofia estará sempre ali, opinando, pensando, abrindo caminhos talvez… Mas já não é mais proprietária e julgadora absoluta de todas as esferas de conhecimento humano. É apenas mais uma. Importante ainda, mas mais uma… Jürgen Habermas disse, certa vez, em uma entrevista sobre um texto seu acerca da Filosofia do Direito, levemente irritado com uma pergunta que lhe pedia detalhamento do impacto de sua abordagem no direito processual (mais ou menos com estas palavras): “O papel da Filosofia é de abrir caminhos, orientar, sugerir. O debate agora e o refinamento dos temas deve ser levado adiante dentro da própria esfera de conhecimento.”. Neste caso, para Habermas, o debate de suas idéias passava agora a pertencer ao próprio Direito e aos juristas.

        Ótima contribuição sua novamente!

        Um grande Abraço!

        Marcelo

  3. Se de um lado ha o que se pode dizer dessa conversacao quase que unanime, É o facto de a posicao rortiniana estar ligada a um descontinuo continuismo, poruqe pensar a sociedade, a democracai nao deixa de ser um substracto ideal equivalente a pensar a verdade, pois, todo o pensameno tem seu foco, discutir quem somos e que misso temos onde estamos inseridos. Por outro lado, a necessidade de equilibrio culmina na de aceitacao de que a diversidade faz o todo e que nada vale por di, nem a filosofia e seus derivados. Por isso basta pensar que nascemos dentro de uma familia regida por valores univocos que se desentegram com o cresciemnto, mas q mesmo desentegrados continuam vinculados com um so.

    • Caro Sancho Pires, muito obrigado pela leitura e por seu comentário. Concordo bastante quando você diz que a diversidade faz o todo. Que a Filosofia, junto a todas as outras áreas de conhecimento humano, nos auxilie na busca de um convívio social melhor. Abraço!

      Marcelo Fraga

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