Immanuel Kant (1724-1804) é um dos mais importantes pensadores da História da Filosofia Ocidental. No prefácio a uma de suas principais obras, a Crítica da Razão Pura(1), o Pensador alemão demonstra que era central sua preocupação com a capacidade de entendimento humana e sobre como se dá o processo de conhecimento, tema que ficou conhecido mais tarde como teoria do conhecimento ou epistemologia. A perspectiva de Kant sobre o assunto surge em um contexto onde o debate estava bastante aquecido.
À época, duas linhas de pensamento discutiam entre si. Uma delas, formada basicamente pela visão de Renê Descartes (1596-1650). Para o Pensador francês, a razão era a única forma de conhecer, apreender, reconhecer os objetos, as coisas e o mundo. Ele afirma, em suas Meditações (Meditações Metafísicas), que as essências verdadeiras das coisas não são meramente percebidas, mas já estavam desde sempre, de forma inata, dentro do espírito, capazes de ser então reveladas (trazidas) pela razão. À luz disso, formulou sua famosa sentença: cogito ergo sum. Penso (primeiro), logo existo (depois). Na perspectiva adotada por Descartes, as percepções sensoriais eram a grande fonte de equívocos do conhecimento, pois podiam “iludir”, “enganar” a razão. Assim, segundo o Filósofo, todo o conhecimento possui uma base exclusivamente racional. Esta visão tornou-se conhecida como Racionalismo.
A outra perspectiva foi construída por pensadores britânicos como John Locke (1632-1704) e David Hume(3) (1711-1776). Locke e Hume ajudaram a constituir uma corrente de pensamento que foi, depois, denominada de Empirismo (ou Empirismo britânico). Para estes Pensadores, a única e exclusiva forma de conhecimento estava baseada na experiência, na experimentação. Segundo Locke, as nossas primeiras idéias nos vêm à mente através puramente dos sentidos ou percepção sensorial. Somente após a estas sensações (percepção do quente, do frio, do branco, do escuro, do amargo, do doce etc), começaria a se desenvolver em nossa mente um processo de reflexão que envolve o crer, o duvidar e o próprio raciocinar. Para Locke, a reflexão é uma espécie de sentido interno que ocorre quando a mente passa a se deter consigo mesma, em face das percepções sensoriais capturadas no mundo externo. A mente, então, avançaria em progressão, das idéias mais simples às mais complexas, constituindo assim a própria reflexão. Locke chega mesmo a sugerir que a mente é uma espécie de folha de papel em branco (tabula rasa, em Latim), onde todo o conhecimento está por ser escrito, desenhado, construído, constituído, sempre a partir da experiência. Não existiriam, para Locke e Hume, proposições privilegiadas, isto é, juízos que não possam ser, antecipadamente, colocados em dúvida.
Este é o contexto em que Immanuel Kant resolve refletir sobre o tema. Diante do impasse (conhecimento inato ou a partir da experiência), o Pensador alemão decide, primeiro, separar as instâncias passíveis de conhecimento em duas: fenômeno e coisa-em-si.
A coisa-em-si designa as coisas, o ente, o mundo mesmo como ele existe, independentemente do conhecimento humano e, portanto, representa o próprio ente real. Trata-se, para Kant, da realidade além da experiência possível, ultrapassando a própria possibilidade do conhecimento. Está além e independe da vontade do ser-humano e não se permite ao verdadeiro alcance do entendimento(4). Somente está na sua possibilidade de pensar, refletindo, portanto, uma espécie de limitação do conhecimento humano.
O fenômeno, segundo o Pensador alemão, significa a imagem sensorial que se origina no sujeito cognoscente (aquele capaz de conhecer, apreender) sob a influência da coisa (do ente, do objeto), na qual esta nos aparece na forma correspondente à capacidade de apreensão peculiar de nossos sentidos. Está relacionado ao espaço e ao tempo e, por ser uma impressão sensorial formada com sujeição é, portanto, subjetiva. Todavia, o fenômeno, em Kant, distingue-se da mera ilusão, porque se refere essencialmente a uma representação subjetiva (com a participação do sujeito, portanto) da coisa-em-si.
A partir dessa distinção (coisa-em-si e fenômeno), Kant sustenta duas formas básicas do ato de conhecer: o conhecimento empírico (a posteriori) e o conhecimento puro (a priori).
O conhecimento empírico se refere às informações, aos dados fornecidos pelos sentidos e é, portanto, posterior à experiência (a posteriori). Exemplo: aquela árvore possui galhos e folhas. O conhecimento empírico para Kant depende, pois, da percepção (sensibilidade) humana. Já o conhecimento puro é aquele que independe de qualquer dado proveniente dos sentidos. É então anterior à experiência (a priori). Exemplo: 7 + 5 = 12. Tal afirmação é sempre e universalmente válida e independe da vontade humana, não estando sujeita a qualquer condição específica.
O conhecimento para o Pensador alemão é, portanto, fruto de uma síntese entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. O conhecimento, desse modo, seria subjetivo, enquanto uma representação do mundo que é provocada pelos estímulos do exterior a ele (sujeito). Se o conhecimento é subjetivo (condicionado ao olhar humano), como se dá a apreensão e a representação do mundo pelo sujeito. Para Kant, isto é possível a partir de uma instância denominada sujeito transcendental. Este sujeito transcendental é constituído por três campos: sensibilidade, entendimento e razão.
A sensibilidade é o elemento que forma o conhecimento imediato, isto é, as “imagens” (intuições) que vão sendo capturadas pelo sujeito no tempo e no espaço. É a capacidade de sentir ou perceber as coisas no mundo.
Já o entendimento é a capacidade de pensar sobre as coisas, de atribuir ou submeter conceitos às coisas, a partir do que Kant chama de categorias (4). As categorias formam uma espécie de conjunto de conceitos básicos que permitem a transformação das intuições trazidas pelo conhecimento empírico, enquanto mero fenômeno, em fenômeno objetivo, exatamente ao ser pensado por interferência de uma das categorias do entendimento. As categorias(5) constituem-se em uma espécie de filtro para análise dos estímulos sensoriais (imagens) trazidos à mente pela sensibilidade. As categorias são, para Kant, os diferentes pontos de vista com base nos quais o entendimento executa uma espécie de síntese dos dados sensoriais da intuição formando, assim, o próprio objeto.
A razão, por sua vez, é a instância onde as categorias do entendimento são consideradas, pesadas e balanceadas entre si, fazendo com que não existam conflitos lógicos, excessos ou desequilíbrios entre elas. A razão, de certa forma, é a última instância do processo mental humano, aquela em que o conhecimento é submetido a uma espécie de tribunal para ser pesado, julgado, avaliado.
Para Immanuel Kant, “as intuições sem conceitos são cegas, já os conceitos sem intuições são vazios”. Se compreendermos as intuições como aquilo que é captado pela sensibilidade e os conceitos como a ação do entendimento, poderemos perceber como a perspectiva adotada pelo Filósofo realiza a conciliação e a síntese entre o Racionalismo e o Empirismo. De um lado, o Racionalismo de Descartes estaria correto: existe uma forma de conhecimento inato ou anterior à experiência, que é o conhecimento puro. De outro, o Empirismo de Locke e Hume possuiria validade também, já que é possível o conhecimento posterior à experiência (conhecimento empírico).
Em Kant, o conhecimento se torna modulado pela mente humana. O mundo, os entes, as coisas estão ali, mas o olhar e o pensar humanos é que dão forma a este mundo. É como se o ser-humano agora colocasse um par de óculos para melhor enxergar e pensar a realidade. O mundo e as coisas já estavam ali, mesmo antes do ser-humano. Mas o que lhes dá a sua melhor e mais compreensível forma é a mente, em uma combinação entre o objeto dado (já existente) e um aparato mental capaz de assimilá-lo e compreendê-lo.
Com a sua Crítica da Razão Pura, Kant realiza um exame das possibilidades de conhecimento da razão humana e estabelece os limites e as condições sob as quais ela (razão) pode conhecer o mundo e as coisas. O Filósofo prometera fazer uma “revolução copernicana”(6) em torno da questão do entendimento humano e, nesse aspecto, conseguiu levá-la a efeito. Inverteu a análise do processo de conhecimento: antes de qualquer afirmação sobre os objetos, as coisas e o mundo, examinou a própria capacidade da mente em conhecer. Por essa participação da mente humana na constituição dos objetos e das coisas, à corrente de pensamento fundada por Kant convencionou-se atribuir a definição de Idealismo.
Marcelo Lorence Fraga
Mestre em Filosofia – PPGF/PUC-RS
Mestre em Administração – PPGA/UFRGS
Notas:
1) A primeira edição da Crítica da Razão Pura é datada de 1781. Kant publica uma segunda edição em 1787. No prefácio desta nova edição, afirma que fez ajustes e alterações no texto original com o objetivo de tornar mais claros determinados aspectos de sua teoria pois, segundo ele, algumas dificuldades e obscuridades do primeiro texto levaram a que “homens argutos tivessem caído em interpretações errôneas ao julgar o livro”. Para vários estudiosos de Kant, há importantes modificações entre a primeira e a segunda edição da Crítica (Arthur Schopenhauer, por exemplo, que prefere o estudo da primeira edição à segunda) e, até hoje, em Seminários e Lições sobre Kant e sua Obra, se discute o valor de uma ou de outra das Edições.
2) Kant aqui resgata e reconstrói o conceito e a classificação de categorias, do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.).
3) Kant agradece a David Hume como aquele pensador que o desperta de seu “sono dogmático”. O que demonstra o interesse e a atenção com que Kant lia e estudava os Autores de sua época.
4) A separação entre as instâncias passíveis de conhecimento pela mente em coisa-em-si e fenômeno e a afirmação de que a coisa-em-si está além da possibilidade de conhecimento trouxeram bastante críticas a Kant. G.W.F. Hegel, outro importante filósofo e uma espécie de que sucessor de Kant no Pensamento alemão, por exemplo, jamais aceitou esta limitação e buscou construir todo um sistema filosófico que assegurasse a plena compreensão do real.
5) As categorias, para Kant, são inatas ao próprio entendimento (ao próprio sujeito) e estão classificadas em número de 12 (realidade, negação e limitação = categorias de qualidade; unidade, pluralidade e totalidade = categorias de quantidade; substância, causalidade e comunidade = categorias de relação; possibilidade, existência e necessidade = categorias de modalidade).
6) Nicolau Copérnico (1473-1543), astrônomo e matemático polonês. Desenvolveu a teoria heliocêntrica, onde contestava a concepção até então havida de que o Sol girava ao redor da Terra, afirmando exatamente o contrário, isto é, que a Terra é que gira em torno do Sol. Galileu Galilei (1564-1642), astrônomo italiano voltou a sustentar o heliocentrismo alguns anos depois. Kant, no prefácio da Crítica da Razão Pura, afirma que pretende fazer em relação à questão do entendimento humano uma revolução próxima a que teria feito Copérnico, alterando o eixo principal de análise para a razão antes do objeto.
Bibliografia Básica:
CORBISIER, Roland. Introdução à filosofia. Tomo II – Parte quinta. O Idealismo Alemão. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
DESCARTES, Renê. Meditações Metafísicas. Col. Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GHIRALDELLI Jr, Paulo. Caminhos da Filosofia. DP&A: Rio de Janeiro, 2005.
KANT, Imannuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Edições 70, 1989.
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Col. Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
SÉBASTIEN, Camus (et al.). 100 obras-chave de filosofia. Vozes: Petrópolis, 2010.
Sensacional, sensacional…!
Até para leigos ou leigas em filosofia como eu, os textos são deliciosos de ler. Muito simples e fáceis de entender. É um material riquíssimo para estudiosos da filosofia, pois fornece resumidamente a ideia e contexto dos assuntos abordados e ainda disponibiliza trilha de estudo para aprofundamento nas bibliografias citadas.
A filosofia nunca foi minha praia, mas lendo os ensaios até dá vontade de ler mais, de pesquisar mais. Muito bom, muito, muito bom mesmo!
Parabéns MARCELO Querido, pela brilhante iniciativa deste blog.
Minha Querida Cida, muito obrigado mesmo por suas considerações tão gentis! A tua fala me motiva imensamente! Ao ler um comentário assim, sinto-me absoutamente estimulado a continuar o Projeto. Antes de querer defender posições filosóficas, muito antes de defender este ou aquele Filósofo ou esta ou aquela Corrente de pensamento filosófico, minha modesta intenção é estimular as Pessoas a lerem, junto com outras tantas Leituras possíveis, um pouquinho, quem sabe aqui quem sabe ali, de Filosofia. Não pretendo que as Pessoas achem que a Filosofia é a Única ou a Melhor forma de perceber o Mundo e as Coisas. De forma nenhuma. A humilde intenção aqui é incentivá-las a notar que algumas das preocupações e inquietações que ocupam as suas Mentes e Almas, ocupam também as Almas e Mentes de gerações e gerações de Pensadores. Nisso, talvez, algumas alternativas de respostas a estas inquietações possam surgir ou ser buscadas..
Um Grande Abraço! Muito obrigado mais uma vez!
E… Apareça sempre! Serás muito bem-vinda!
Marcelo L. Fraga
Olá novamente.
Ótimo artigo. Poder-se-ia nominá-lo de “Divulgação Filosófica” em paralelo à textos de Divulgação Científica. Porém a seriedade do escrito e a elucidação de fontes extrapolam a mera divulgação. Grato pelo texto. Deixo uma dúvida que a mim consome: o filósofo habitualmente dissocia a mente do mundo real? Como se a mente fosse algo à parte um mero observador do mundo universo que, de fato, existe? Ou não?
Caro Amigo Paulo Braun. Obrigado mesmo pela Leitura! Outra questão absolutamente pertinente colocada por Você! Em nada me surpreende, devo dizer. Você tocou, talvez, na ponto mais caro a Richard Rorty no seu livro A Filosofia e o espelho da Natureza. Uma das grandes divergências de Rorty em relação à epistemologia (teoria do conhecimento), é a crítica contundente ao modelo especular de conhecimento.
Rorty leva adiante esta crítica procurando desfazer a noção de mente, enquanto um espaço especial e separado que contém os elementos ou processos que tornam possível o conhecimento, como espelho de uma determinada realidade existente externamente a ela. Rorty elabora, em seu A Filosofia e o espelho da Natureza, uma tentativa de desconstrução do modelo de mente e de essência especular elaborado por Locke, Descartes e Kant ao longo dos séculos XVII e XVIII. Tal desconstrução é empreendida com o auxílio de aspectos da filosofia de Heidegger, Wittgenstein e Dewey. Para Rorty, o homem é praticamente igual a todo o restante da natureza, dentro de uma perspectiva darwinista (Rorty o chama o homem, por vezes, em seus escritos de ‘bípede sem penas’).
Citando o próprio Rorty: “Wittgenstein, Heidegger e Dewey mostram-se concordantes em que a noção de conhecimento como representação acurada, tornada possível por processos mentais e especiais e inteligível através de uma teoria geral da representação deve ser abandonada. Para todos os três, as noções de ‘fundamentos do conhecimento’ e da filosofia como girando ao redor da tentativa cartesiana de responder ao ceticismo epistemológico são colocadas de lado. E mais, eles colocaram de lado a noção de ‘a mente’, comum a Descartes, Locke e Kant – um objeto de estudo especial, localizado no espaço interior, contendo elementos ou processos que tornam possível o conhecimento.”
Essa perspectiva naturalista, darwinista, de Rorty visa, exatamente, entre outras coisas, desfazer essa idéia de Mente como um espaço à parte e dissociado do mundo real. Na filosofia moderna (Descartes, Locke, Kant, Hume), a Auto-consciência e a Mente, por exemplo, ainda são instâncias muito caras, precisam ser justificadas. A partir de Darwin, e sua perspectiva evolucionista, os pensadores começam a pensar um outro modelo de teoria do conhecimento. Wittgenstein, Heidegger, John Dewey, e mesmo Nietzsche, foram fundamentais para isso. Superar a metafísica é, também, superar o modelo de Mente e de Auto-consciência como uma espécie de instâncias super-humanas. Uma visão mais orgânica de ser humano é construída. O ser humano passa (volta?) a fazer parte da natureza. Não é mais um ser especial, ungido pela graça de contar com instâncias nobres e apartadas da natureza.
Um Grande Abraço! E obrigado mais uma vez pela presença! Seja sempre bem-vindo!
Marcelo
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