O QUE É ILUMINISMO?

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Uma perspectiva a partir da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt

Este ensaio pretende discutir a possibilidade ainda de uma sociedade marcada pela Ilustração, pelo Esclarecimento, a partir de uma perspectiva baseada em trabalhos de autores da chamada Escola de Frankfurt. Antes, faz-se necessário uma exposição sobre o movimento que se convencionou denominar de Iluminismo (Aufklärung, em alemão. Enlightenment, em inglês).

O Iluminismo pode ser definido como um movimento filosófico surgido ao longo do século XVIII que se caracterizou pela confiança no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento. À idéia de progresso técnico estava associada, uma crença no progresso moral da humanidade. Um expressivo compromisso do movimento Iluminista é o de melhoria da vida individual e coletiva do ser humano.

Todavia, o Iluminismo não foi apenas um movimento filosófico, mas uma tendência do pensamento, das artes e da literatura na Europa, e mesmo na América, durante o século XVIII, antecedendo ou preparando acontecimentos históricos como a Revolução Americana, ou Guerra de Independência dos EUA (1776-1783), a Revolução Francesa (1789-1799), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Immanuel Kant (1724-1804), talvez o maior representante dos ideais iluministas, preconizava o lema “atrever-se a conhecer“. O Filósofo alemão, em um ensaio datado de 1784, Was ist Aufklärung? (O que é o Iluminismo?), sugere que o movimento iluminista representa a evasão dos homens do estado de minoridade, conceito que para Kant significa incapacidade de servir-se do próprio intelecto.

Surge, portanto, com o Iluminismo o desejo de reexaminar e pôr em questão as idéias e os valores recebidos, herdados, reformulando-os com o uso pleno da razão. O Iluminismo marcou um momento decisivo para o declínio do poder da Igreja e da Monarquia e para o crescimento do secularismo cultural, além de servir de modelo para o liberalismo político e econômico e mesmo uma tentativa de reforma humanista do mundo ocidental.

Esta é a visão enciclopédica e histórica do Iluminismo. Analisado em seu contexto, não há dúvidas de que o movimento iluminista inspirou uma visão de mundo que ajudou a gerar acontecimentos e eventos importantes como os já citados acima, além de outros tantos em menor escala. Mais do que isso, os ideais do Iluminismo embalaram uma cosmovisão que atravessou os séculos XIX e XX, e que estava composta por elementos como a confiança na razão, a fé no progresso moral do ser humano, o crédito para o avanço do humanismo universalista. Como exemplo disso pode-se fazer alusão à Declaração Universal dos Direitos do Homem promulgada pela ONU em 1948, cuja evidente inspiração é a declaração de direitos do homem da Revolução Francesa, e onde foram reafirmados ideais como a liberdade e igualdade de todos os homens.

Mas e esta cosmovisão iluminista efetivou-se universalmente? Terão os acontecimentos dos séculos XIX e XX marcado uma ruptura entre a sustentação teórica dos ideais das Luzes e sua aplicação prática? Neste Ensaio, iremos analisar esta questão com o auxílio de elementos da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, especialmente a partir de três de seus principais representantes: Theodor Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973) e Herbert Marcuse (1898-1979).

A chamada Escola de Frankfurt teve sua origem na criação do Instituto de Pesquisas Sociais, em 3 de fevereiro de 1923. Com sede na cidade universitária de Frankfurt, o Instituto tinha o objetivo de lançar a noção de um marxismo não-ortodoxo, “verdadeiro” ou “puro”, e seu nome quase chegou a ser Instituto para o Marxismo. O projeto do Instituto modificou-se em relação àquele originário, avançando em direção ao estudo de fenômenos sociais, sob a denominação de uma filosofia social, a partir de uma reorganização promovida por seu diretor-presidente, à época, Max Horkheimer, em 1931.

A preocupação central do Instituto passou então a ser a produção de uma Teoria Crítica sobre a sociedade e a razão modernas. A corrente de pensamento que aí se formou passou a ser conhecida como a Escola de Frankfurt. Seus principais representantes foram Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Erich Fromm.

Na produção de sua Teoria Crítica, os autores da Escola de Frankfurt exploraram a noção de contradição, denunciando sua sonegação pelo que denominaram de Teoria Tradicional (em oposição à Teoria Crítica por eles pretendida), que entenderia o pensamento como identidade, como não-contradição. Para a Teoria Tradicional, na visão dos analistas frankfurtianos, a alteridade e a diversidade deveriam ser conduzidas à unidade. O contraditório seria sinônimo de irracionalidade.

A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt está inserida em uma tradição filosófica que passa por Immanuel Kant, F. G. W. Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883). A crítica de Nietzsche (1844-1900) e a filosofia negativista de Arthur Schopenhauer (1788-1860) também são sua fonte de inspiração. Contudo, para efeito deste Ensaio, será explorado um outro pilar fundamental da construção teórica dos frankfurtianos, que é o pensamento de Sigmund Freud (1856-1939).

Freud, em obras como O Mal Estar da Civilização, Totem e Tabu e o Futuro de Uma Ilusão, trouxe para o centro da discussão a noção de instinto natural do ser humano e suas compulsões, por exemplo, para a morte, o canibalismo e o incesto, expondo assim o elemento irracional (ou não-racional) da personalidade humana. Além disso, a “descoberta” científica do inconsciente, e a influência deste no comportamento humano, colocava em posição incômoda a noção de ser humano como animal racional. Já que a partir da presença ainda destas compulsões, o homem ainda continuava pertencendo à natureza, ainda em parte dominado por instintos naturais. Não apenas pela “luz” da razão.

Sigmund Freud ainda proporia uma antinomia ou paradoxo contundente à visão iluminista de progresso moral: ao diagnosticar que cada indivíduo é um inimigo em potencial da civilização e que somente um rígido conjunto de regulamentos, instituições e ordens é capaz de proteger a sociedade do indivíduo, o fundador da psicanálise sugere que liberdade e justiça são valores inversamente proporcionais entre si.

Como expõe Herbert Marcuse em sua obra Eros e Civilização (1972), para Freud, o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade são eternamente antagônicos. Assim, ao realizar-se a transcendência da Psicologia Individual freudiana para o campo da Psicologia Social, conclui-se que a noção de uma civilização não-repressiva é impossível. Diz Marcuse: “Se a ausência de repressão é o arquétipo de liberdade, então a civilização é a luta contra essa liberdade.”.

Os autores da Escola de Frankfurt foram buscar nestas construções de Freud elementos para questionar as bases da ordem social, considerando agora a razão não como a fonte inexorável de realização do ser humano, mas de alguma forma subordinada aos instintos e, portanto, associada a uma “indesejada” dose de irracionalidade. Além disso, esta visão “desencantada” da razão permite a Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, e a Marcuse, em A Ideologia da Sociedade Industrial, denunciarem que a razão ao buscar instrumentalizar a natureza a serviço do homem acabou instrumentalizando-se a si própria, tornando-se assim elemento de dominação e não de emancipação do ser humano.

A partir dos trabalhos dos autores da Escola de Frankfurt é possível aperceber-se que não se pode aderir inocentemente à razão, isto é, acreditar puramente que a sociedade irá, com naturalidade, evoluir para uma espécie de Idade de Ouro da Razão, como presumiam talvez alguns pensadores iluministas (de forma praticamente iluminista, o próprio Karl Marx chegou a sugerir o alcance de uma Idade de Ouro da Razão, após a derrocada do sistema capitalista).

De outro lado, o pessimismo, ou negativismo, típico de alguns escritos dos integrantes da Escola de Frankfurt, e sua crença em uma espécie de redenção estética da sociedade moderna, não oferece uma alternativa atraente à desconfiança na razão. Em dado momento, a Escola de Frankfurt foi rotulada de “hotel à beira de um abismo”, de forma a caracterizar seu pessimismo em relação ao futuro da sociedade moderna.

Contudo, a partir da percepção de que a racionalidade é apenas uma das facetas deste ser complexo e inacabado que é o ser humano, e da noção de que a própria razão pode ser descaracterizada, tornando-se não mais um elemento substantivo da emancipação e realização humana, mas uma forma instrumentalizada de dominação e alienação, é que se poderá, de forma ironicamente esclarecida, buscar a construção de uma sociedade que leve ao maior número possível de seus integrantes os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

O filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-) é, de certa forma, um representante tardio e herdeiro da tradição frankfurtiana. Enquanto jovem, trabalhou como pesquisador do Instituto, sendo assessor de Adorno e Horkheimer. Habermas incorpora à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt elementos alternativos e pragmáticos para a estruturação de uma sociedade mais justa. Boa parte de seu Trabalho posterior a sua participação no Instituto foi na direção à construção destes elementos alternativos ao negativismo de Adorno e Horkheimer. Nas palavras do próprio Jürgen Habermas:  “Em vez de desacreditar, como hoje é moda, os ideais do século XVIII, isto é, os ideais da Revolução Francesa, deveríamos tratar de buscar realizá-los, permanecendo conscientes, isto sim, de que ao Iluminismo é inerente uma dialética que, sem dúvida, comporta seus riscos (…)”.

A Teoria da Ação Comunicativa e a Ética do Discurso, propostas por Habermas, representam estas alternativas positivas e pragmáticas à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, pois ao mesmo tempo em que se posicionam criticamente em relação às deficiências que perduram na sociedade contemporânea, oferecem uma consistente alternativa para a redução de tais mazelas, principalmente através da re-valorização do ser humano, como ser de palavra, como ser social.

Jürgen Habermas, na construção de sua teoria crítica da sociedade, entende necessário aprofundar o exame da própria racionalidade e desenvolve a sua Teoria da Ação Comunicativa como elemento de compreensão para a fundamentação da Ética do Discurso.

A Ética do Discurso é uma teoria da moral que recorre à razão para sua fundamentação. Habermas parte do conceito de razão reflexiva de Kant para desenvolver o conceito de razão comunicativa. Enquanto na razão kantiana o juízo categórico está fundado no sujeito e supõe uma razão monológica, a razão comunicativa está centrada no diálogo, na interação entre os indivíduos do grupo, mediada pela linguagem e pelo discurso.

A razão comunicativa, em complemento à razão reflexiva (aquela apenas do indivíduo) é enriquecida exatamente por ser processual, construída pela interação entre os sujeitos enquanto seres que se posicionam criticamente frente às normas. A validade das normas, portanto, não deriva de uma razão abstrata e universal, tampouco depende da subjetividade de cada um, mas do consenso encontrado a partir do grupo, da interação do conjunto dos indivíduos participantes de um debate e, nesse processo, a subjetividade se transforma em intersubjetividade.

Contudo, do ponto de vista da razão comunicativa, a interação entre os sujeitos precisa ser estabelecida sem as pressões típicas dos sistemas econômico e político da sociedade moderna, que se fundam, de certa maneira, na força do dinheiro e no exercício do poder. A ação comunicativa supõe o entendimento entre os indivíduos que buscam, pelo uso de argumentos racionais, convencer o outro a respeito da validade da norma, permitindo um avanço para uma sociedade baseada na espontaneidade, na solidariedade e na cooperação.

Jürgen Habermas apresenta alternativas positivas à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Ao mesmo tempo, quer resgatar e reforçar valores e ideais do Iluminismo. Este é o aspecto positivo contido na teoria habermasiana.

Talvez esse seja um dos desafios a ser enfrentados pela sociedade pós-industrial ou pós-moderna: equilibrar a confiança na razão com uma perspectiva crítica da sociedade e do próprio ser humano. Sem ingenuidade, desconfiar dos caminhos fáceis e das alternativas prontas. Se o ser humano é inacabado e imperfeito, a sociedade por ele construída também estará sempre inacabada e em construção. A Filosofia estará sempre ali. Atenta e disposta a auxiliar. Contribuindo, em conjunto com tantas outras áreas de conhecimento, para a realização de uma sociedade mais justa e com oportunidades de realização para todos.  Jürgen Habermas e sua obra são a prova disso.

 

Marcelo Lorence Fraga

Mestre em Filosofia

Horkheimer, Adorno e o jovem Hanermas ao fundo

Horkheimer, Adorno e o jovem Habermas ao fundo

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. O Conceito de Iluminismo. In Adorno. Coleção Os Pensadores. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

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ASSOUN, Paul-Laurent. A Escola de Frankfurt. São Paulo: Ática, 1991.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e outros Trabalhos. Obras Completas de Sigmund Freud. Edição Standard. Volume XIII. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

______________. O Futuro de uma Ilusão, O Mal Estar na Civilização e Outros Trabalhos. Obras Completas de Sigmund Freud. Edição Standard. Volume XXI. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

_________________. Teoría de la Acción Comunicativa: complementos y estudios previos. 3. ed. Madrid: Cátedra, 1997.

_________________. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Volumes I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

_________________. Conciencia Moral y Acción Comunicativa. 5. ed. Barcelona: Península,1998.

_________________. Comentários à Ética do Discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. 3. ed. São Paulo: Moderna, 1995.

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