Heidegger e a superação da Metafísica

Martin Heidegger

Heidegger e a superação da Metafísica

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), entre outros objetivos, tomou para si o desafio de superar a metafísica. Procurando seguir um caminho distinto daquele adotado pelo movimento analítico (filosofia analítica), que objetivou o mesmo através de uma análise praticamente lógico-matemática dos constructos metafísicos, Heidegger decide mergulhar nas origens da tradição do pensamento ocidental, acessando um momento em que ainda não houvesse metafísica, isto é, no pensamento grego pré-socrático – principalmente com Heráclito e Parmênides.

Heidegger praticou uma inovadora ruptura com a metafísica ocidental através de um processo que denominou destruição, mas destruição no sentido de desconstrução e não de eliminação. Trata-se pois de empreender uma análise desconstrutiva de dentro da própria metafísica, já que para Heidegger é impossível colocar-se fora dela. Nesse sentido o filósofo fala em superação e adentramento a metafísica, que significariam refazer a construção com que a metafísica trabalhava ao se auto-expor nos textos da história da filosofia.

A desconstrução da metafísica é empreendida por Heidegger através de uma linha mestra, que é adotar uma determinada postura diante do ser humano, isto é, a idéia de uma radical finitude e faticidade do homem. Com inspiração inicial em Kant, o filósofo da Floresta Negra procura, em seu projeto de superação da metafísica desde dentro, responder à questão “que é o homem?”. Esta questão será respondida por ele a partir de sua analítica existencial. Através da analítica existencial, Heidegger localizará o aspecto principal de toda a metafísica: a questão do esquecimento ou encobrimento do ser.

Para o filósofo alemão, a história da metafísica é exatamente a história do esquecimento do ser, isto é, o ser na metafísica é sempre tratado como ente. O ser é sempre objetificado e neste processo imediatamente identificado com qualquer outro ente da natureza. Esta é premissa principal de Heidegger em sua crítica ao esquecimento do ser pela metafísica: não entificar o ser.

Conforme Martin Heidegger, somente é possível não confundir o ser com algum ente, quando ele é pensado a partir da compreensão do ser. Então o espaço do acesso aos entes é aberto a partir do horizonte do ser. É para isso que o homem é Da-sein, sendo essa expressão (Dasein) o constructo para definir, primeiramente, a transcendentalidade e, depois, o acontecer da história do ser. Na relação entre ser e ente se estabelece, assim, na perspectiva de Heidegger a diferença ontológica. Não apenas uma diferença, mas uma diferença absoluta, ente e ser precisam ser pensados separadamente, distintamente.

A revelação, a compreensão do ser que distingue ser de ente, sustenta todas as nossas expressões lingüísticas e, portanto, todo nosso conhecimento, isto é, todo vir ao encontro dos entes.Como a metafísica, para Heidegger, não pensou essa diferença entre ser e ente, ela acabou por “entificar” o ser, isto é, equiparou equivocadamente ser e ente, determinando assim um obstáculo extraordinário para a filosofia em pensar as condições de conhecimento do ente e para pensar o ser.

É essa “confusão” da metafísica que leva Heidegger a colocar a diferença ontológica como ponto de partida para falar de sua superação. E é por isso também que o filósofo fala de um adentramento na metafísica. Para ele, faz-se necessário desconstruir a metafísica para expor os motivos da entificação e o encobrimento da diferença entre o ente e o ser, o que significa dizer, demonstrar porque a metafísica ao igualar ente e ser não pensa o mesmo o ser, isto é esqueceu o ser, pensando apenas o ente.

A partir de sua intuição a respeito da diferença ontológica, isto é, da fundamental distinção entre ser e ente, Heidegger se dá conta de que toda a história da metafísica é a história da entificação, da objetificação do ser, através, por exemplo, de conceitos como essência, substância, alma, animal racional, cogito, subjetividade, mente, super-homem, vontade de poder etc. São todas tentativas de catalogar o homem, de classificar e etiquetar o ser, equívoco em que incorreu o próprio Nietzsche, pretenso ‘destruidor’ da metafísica.

Com o desvelamento do ser, realizado por Heidegger, é possível realizar a superação da metafísica enquanto instância objetificadora do ser, já que o ser é, agora, projeto, movimento, possibilidade, e não ente acabado, como os demais entes da natureza.

Se o ser é movimento, diferença, não mais é possível sustentar a busca pelo uno, pela identidade, característica da metafísica. Se o ser é movimento e se tende para o nada, em sua inexorável condição de ser-para-a-morte, impossível defender uma idéia de infinitude, existencial ou de conceitos, como pretendia a metafísica. Sendo então o ser movimento, em seu constante caráter de inacabado, seu caráter de projeto, torna-se indefensável a fundamentação do idealismo de forma e pensamento pretendido pela metafísica. A essência do ser humano é sua existência, projeto inacabado e imperfeito, exatamente por ser incompleto. Com Heidegger surge a fundamental  constatação de que o ser do ser humano se dá no acontecer de sua existência, em contato com o mundo, mediado pelo tempo, temporalizado.

O Dasein (cuja melhor tradução possivelmente seja: Ser-aí. Ernildo Stein, por exemplo, a adota) surge através de um processo dinâmico de interação entre ser, mundo e tempo, um círculo positivo que resulta no Dasein, mas não apenas como um produto, e sim como um elemento integrante do próprio processo em si. É o que a figura abaixo procura expressar:

A formação do Dasein

Em Heidegger a questão do ser é substituída pela compreensão do ser. Neste momento se dá a conexão entre ser e ser-aí (Dasein), isto é, acontece o modo de compreender o ser. O filósofo brasileiro Ernildo Stein, especialista em Heidegger, diz que ” (…) o ser faz parte do modo de ser do ser humano”, o que faz surgir o conceito de Ser-aí (Dasein). O Dasein em Heidegger representa o aí do ser, portanto, o ser-aí. Dito de outra forma: é preciso operar com o conceito de ser do ser-humano, e este ser do ser-humano é o lugar de sua compreensão, antes mesmo de se acessar o ser-humano enquanto ente.

No Livro que resgata palestras de Heidegger em Zollikon, na Áustria (Seminários de Zollikon), o filósofo, antes de iniciar uma de suas preleções, elabora no quadro um esboço, um desenho extraordinariamente simples que exprime com clareza a diferença ontológica, e que mostra o ser em sua liberdade, indefinição e possibilidades, é a própria representação do Dasein, do animal ainda não catalogado. Apesar de não reproduzir exatamente o gráfico elaborado por Heidegger, o desenho abaixo a ele assemelha-se e serve para ilustrar o que o filósofo quis mostrar:

O Dasein

Como fica patente neste esboço de Heidegger, o ser é movimento, projeto, devir, possibilidades, enfim, e seu único ponto fixo de certeza é o de ser-para-a-morte. Nesta espécie de movimento incerto e constante, o Dasein é incatalogável, isto é, quando se pensa haver atingido sua “essência”, o ser-ele-mesmo, o Dasein já não mais está lá, se movimentou, não é mais o mesmo.

Daí a inspiração tomada de Heidegger pela filosofia existencialista, de J-P. Sartre (1905-1980) e M. Merleau-Ponty (1908-1961), muito embora o próprio Heidegger não desejasse vincular sua filosofia com o movimento existencialista. Olhando para este desenho é fácil imaginar como Sartre concluiu que o homem está condenado a ser livre, ou que o início e o fim do homem é o nada, apenas com sua existência entre eles.

Este esboço mostra, de forma contundente, o caráter de dependência do ser humano do mundo, do tempo. A construção de Heidegger assinala toda a mundanalidade e temporalidade do homem, do ser, exatamente porque revela o caráter de inacabamento e incompletude do ser humano. A tentativa do homem em completar a si mesmo, no contato com o mundo e dentro de um horizonte de tempo, é que irá formar o ser humano, que, no entanto, continuará sempre inacabado.

O homem é praticamente igual a todo o restante da natureza, dentro de uma perspectiva darwinista. Todavia, ao mesmo tempo, é extraordinariamente diferente. Isto porque o homem é apenas um organismo um pouco mais complexo que os demais organismos vivos da natureza que, ao contrário destes demais organismos, é sempre inacabado.

E exatamente isto faz um universo de diferença. O inacabamento do homem o livra de qualquer determinismo, seja ele de caráter mitológico, religioso ou metafísico. O estado de não acabado o condena a ser livre, coloca antes e no final de sua existência o nada. Sua existência é o tudo. Como aponta Heidegger, “a essência do homem é sua existência” .

Sobre o desenho, Heidegger expressou o seguinte:

“A finalidade deste desenho é apenas mostrar que o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente presente num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si. Ao contrário, este existir consiste de ‘meras’ possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão e pelo tato. Todas as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na Psicologia e Psicopatologia, devem desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma visão completamente diferente. A constituição do existir humano a ser considerada daqui em diante se chamará ‘Da-sein’ ou ‘ser-no-mundo’ (…) Entretanto, este Da não significa, como acontece comumente, um lugar no espaço próximo ao observador. O que o existir como Da-sein significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira. O Da-sein humano como âmbito do poder-apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma, em nenhuma circunstância, algo passível de objetivação”.

Heidegger se preocupou, portanto, em estabelecer as bases para uma nova concepção de ser humano e para a realização de suas potencialidades. O filósofo  quis estabelecer uma nova plataforma, agora não-fixa e, portanto, não-metafísica, de onde fosse possível analisar o ser esquecido do ente, isto é, uma nova plataforma para se pensar o ser humano. Esta plataforma não-fixa está baseada na diferença ontológica, isto é, no movimento, na abertura do ser. A partir disto, a abertura do ser do entre, um universo de possibilidades se abre.

Esta visão, esta intuição, de Heidegger percorre todo seu pensamento, de Ser e Tempo até Tempo e Ser. Como mostra o filósofo brasileiro Ernildo Stein, a obra de Heidegger revela uma unidade. Apesar das diferenças entre o Heidegger I, II e III, o filósofo parece perseguir, coerentemente, um único pensamento, isto é, evidenciar na tradição filosófica o imperdoável esquecimento do ser, e fundamentar a superação deste esquecimento através da revelação da diferença ontológica.

Na perseguição a estes objetivos, Heidegger consegue, de maneira original, e pela primeira vez, estabelecer a via de superação da metafísica. Superação da metafísica enquanto uma tentativa de objetivação do ser. Heidegger realizou esta superação acentuando o caráter de finitude da existência humana e o mundo de possibilidades que é sua trajetória, dado seu caráter de abertura, de projeto, de projeção, de inacabamento. A essência do homem é sua existência, irá sustentar o filósofo alemão, daí sua liberdade.

Ao demonstrar o mundo de possibilidades que marca a trajetória humana, Heidegger também revela um novo mundo de possibilidades para a filosofia. Heidegger abre uma passagem, destrava uma tranca, descerra uma cortina, abre um portal.

O filósofo alemão, no entanto, não aponta caminhos ou direciona caminhadas, apenas abre a passagem. Heidegger não constrói uma filosofia do agir humano – ética –, ou uma teoria do conhecimento – epistemologia -, ou uma filosofia política. Não é este seu objetivo. Seu objetivo é sim superar um obstáculo, retirar uma barreira que impedia o pensamento ocidental de prosseguir, de ir adiante, de seguir em frente.

Ao fundamentar seu pensar III, Heidegger apenas diz “o mais grave é que ainda não pensamos”. Com sua denúncia, o filósofo alemão não pretende dirigir o pensamento para uma determinada direção, somente mostra que pensar é preciso. Um pensar que vá além do pensar neuro-biológico (pensar I) e do pensar lógico-científico (pensar II), mas que vá além não para um destino específico, um pensar que apenas pense. A passagem está aberta, basta apenas que se escolha o caminho e caminhe. Qual o caminho correto a seguir? Heidegger não se preocupou em estabelecê-lo, apenas abriu a passagem.

Martin Heidegger em sua busca de superação da metafísica deixou duas grandes contribuições para o pensamento ocidental: (a) a idéia de abertura do ser, do ser como movimento e, portanto, desprovido de uma natureza intrínseca, de uma essência fundamental e, por conseguinte, (b) a noção de mundo sem uma essência imutável, também sem uma natureza intrínseca a ser descoberta e revelada.

Com os escritos de Heidegger, pode-se finalmente buscar a superação da Metafísica.

Marcelo Lorence Fraga

Heidegger em sua habitual caminhada pela Floresta

Heidegger em sua habitual caminhada pela Floresta

Heidegger

Heidegger

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

HEIDEGGER, Martin. ¿Qué significa pensar?. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Nova: s/d.

________________. Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

________________. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001.

________________. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.

LOPARIC, Zeljko. O Fim da Metafísica em Carnap e Heidegger. In Boni, Luis A. De (org.). Finitude e Transcendência. Festschrift em Homenagem a Ernildo J. Stein. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: PUCRS, 1995.

STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

___________. Diferença e metafísica: ensaios sobre desconstrução. Porto Alegre: EDIPURS, 2000.

___________. Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da interrogação da heideggeriana. Coleção ensaios – política e filosofia. Ijuí: Unijuí, 2001.

___________. Pensar é pensar a diferença. Filosofia e conhecimento empírico. Coleção Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2002.

___________. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPURS, 2002.

___________. Pensar e Errar. Um ajuste com Heidegger. Coleção Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2011.

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3 opiniões sobre “Heidegger e a superação da Metafísica

  1. Nossa, Caríssimo Marcelo!!
    Um deleite esse Ensaio sobre Heidegger!! O tão esperado Heidegger!
    Sempre fui uma curiosa sobre filosofia, sobre o pensar alemão que historicamente espantou o ocidente por sua complexidade, diversidade, seriedade e profundidade. Kant, Hegel e Nietzsche nos dão uma idéia disso e a ruptura com a tradição da metafísica, ou como bem disseste no Ensaio, sua desconstrução, foi realmente um marco fantástico! Sempre pensei no porquê de a Alemanha ter aparecido, conquistado seu lugar “ao sol da filosofia” de forma tão forte e contundente, mas imagino que parte disso pode ser explicado pelo contexto histórico, concordas? Quando o II Reich alemão sucumbiu em 1918, frente a impérios e nações que guerreavam por quatro anos, acredito que foi como se ali fosse dada a permissão para que todos os fantasmas e demônios viessem à luz. Li uma vez que, naquele momento, teria sido aberta a “Caixa de Pandora”, o que foi ótimo, sobretudo e especificamente, quanto a questão do Ser de Heidegger.
    Para compreender bem a desconstrução sugerida pelo filósofo alemão, foi de suma importância a leitura do outro Ensaio, subsequente a esse o “Características da Metafísica ou a Metafísica e a Finitude”. Li o ensaio de Heidegger duas vezes. Uma antes do Ensaio sobre a Metafísica e outra depois, e confesso-te que na segunda leitura é como se as idéias, magicamente, clareassem!
    Compreender a questão da infinitude na metafísica, bem como, a condição menos ameaçadora da própria existência e das contingências do processo histórico quando se tem verdades absolutas e universais, é primordial para que possamos compreender o ponto chave da desconstrução e superação da metafísica por Heidegger e da diferença ontológica entre ser e ente. Com Heidegger, “o ser é, agora, projeto, movimento, possibilidade, e não ente acabado, como os demais entes da natureza.” Ou seja, a condição do homem é sempre de um ser não acabado.
    Outro ponto muito legal foi a tua colocação quanto ao Dasein de Heidegger: “é preciso operar com o conceito de ser do ser-humano, e este ser do ser-humano é o lugar de sua compreensão, antes mesmo de se acessar o ser-humano enquanto ente.”, e a representação das setinhas subindo faz com que tenhamos a nítida visualização da idéia do ser em sua liberdade, indefinição e possibilidades. O Dasein (Ser-aí) é incatalogável, se movimenta, não é sempre o mesmo. Isso conseguiu ficar muito claro.
    Embora não tivesse o conhecimento profundo da questão, sempre achei que o pensamento de Heidegger quanto ao ser era inovador, diferente de tudo que já tinha lido ou visto. Hoje, depois de ler esse Ensaio, tenho certeza do leque de possibilidades que o filósofo alemão abriu para a filosofia e, consequentemente, nos abriu. Achei interessante o fato de Heidegger não ambicionar apontar caminhos, ele apenas abriu passagem, superou um obstáculo, libertou o pensamento. Isso é tão fantástico!
    Duas questões também me chamaram a atenção:
    Primeiro:
    Sempre que li sobre Heidegger, os autores colocavam o Heidegger I, II e III como sendo o Heiddeger III, uma linha de pensamento destoante das anteriores. No teu Ensaio, segundo Ernildo Stein, a obra de Heidegger revela uma unidade, à medida que toda sua obra persegue um único pensamento que seria o de “evidenciar na tradição filosófica o imperdoável esquecimento do ser, e fundamentar a superação deste esquecimento através da revelação da diferença ontológica.” E compreendendo a fundamentação do pensar III, quando Heidegger apenas diz “o mais grave é que ainda não pensamos”, comprovamos que a linha de raciocínio continua sendo a mesma, ou seja, mantém-se a unidade. Dessa vez, consegui visualizar, de forma bem clara, a unidade!

    Segundo:
    Sempre li que Martin Heidegger foi o maior representante do movimento existencialista que tem J-P Sartre como um dos seus grandes e, para mim, mais conhecido representante. No teu Ensaio me chamou a atenção quando disseste que o próprio Heidegger não desejava vincular sua filosofia com o movimento existencialista. Aí eu me confundi! Heidegger foi, de fato, existencialista ou sua obra/idéia serviu apenas de inspiração para o existencialismo? A dúvida se estende e passa ao humanismo. O existencialismo é um humanismo? Fez-me pensar!!
    Bom, acho que meu comentário ficou um tantinho grande, mas é devido a minha paixão por Heidegger. Adorei!! Animou meu Domingo!! Confesso que nunca li nada de tão fácil, didático e de simples compreensão sobre o filósofo alemão, que foi, sem dúvida, um dos mais influentes pensadores do século XX, e da superação da metafísica. E para todo aquele que me disser, a partir de hoje, que Heidegger é complicado e, deveras, complexo, vou pedir pra que leia esse Ensaio! É impossível lê-lo sem compreender, no mínimo, as idéias básicas! Parabéns!!!

    Grande, Grande e Apertado Abraço!!!!

    Vanna.

    • Prezada Vanna,

      Muito obrigado por sua leitura, sempre atenta e compenetrada.

      Um dos objetivos do Blog Esboços Filosóficos é apresentar o núcleo do pensamento dos principais autores da Filosofia Ocidental. Nem sempre isso é tarefa fácil, já que a Filosofia adquiriu um alto nível técnico e acadêmico, especialmente a partir dos Contemporâneos, com o aprofundamento do método filosófico, representado, por exemplo, pela fenomenologia de Husserl, a analítica existencial de Heidegger, o método lógico-matemático da filosofia analítica e do positivismo lógico (Frege, Russell, Carnap, Wittgenstein, Schlick e outros).

      O pensamento de alguns filósofos é um pouco mais acessível do que de outros, seja portanto pela própria complexidade do pensamento, seja pela complexidade do método de abordagem e análise utilizado.

      Heidegger não é um pensador fácil. Ao contrário: é bastante complexo. Então, receber seu comentário de que o Ensaio lhe auxiliou, ainda que minimamente, na compreensão de uma parte ou outra do pensamento do Filósofo da Floresta Negra me estimula em dar prosseguimento ao Projeto.

      Você levanta questões importantes e pertinentes em seu comentário. Uma delas diz respeito ao fato de Heidegger integrar-se ou não à corrente de pensamento do Existencialismo.

      Bem, o próprio Heidegger, em um documento chamado Carta sobre o Humanismo, negou estar vinculado ao Existencialismo ou, dito de outra forma, negou ser sua filosofia existencialista. Então, se o próprio Autor o disse, não vejo por que contrariá-lo. Mas podemos tentar expandir o tema.

      Heidegger foi aluno de Edmund Husserl, importante filósofo alemão fundador do método fenomenológico. Heidegger dedica sua principal obra, Ser e Tempo, ao Mestre, “em testemunho de amizade e admiração” tamanha era sua identificação com os ensinamentos de Husserl. Em dado momento, Husserl chega a dizer: “A fenomenologia somos eu e Heidegger”, manifestando, de certa forma, que o método fenomenológico levado a sério era empresa dele e de Heidegger apenas.

      Mais adiante, Heidegger começa a desenvolver seu próprio método fenomenológico (a fenomenologia hermenêutica), que derivava ou pouco do método original de Husserl, o que vai levando aluno e mestre a um afastamento (questões políticas também estão aí envolvidas. Heidegger vinculou-se em dado momento ao movimento nacional-socialista, chegando a tornar-se Reitor da Universidade de Freiburg por indicação do Partido. Professores de ascendência judaica, como era o caso de Husserl, foram forçados a se afastar do exercício da cátedra). Utilizando-se do método fenomenológico, Heidegger desenvolve sua ontologia fundamental, que resulta na analítica existencial, cujo objetivo é investigar a diferença entre ser e ente.

      Penso que seja importante esse resgate com o objetivo de demonstrar a convicção metodológica de Heidegger, a firmeza de sua forma de filosofar, de refletir acerca das questões filosóficas que o inquietavam.

      A Carta sobre o Humanismo, de 1946 (existe em Livro), é onde Heidegger assevera não ser a sua filosofia existencialista. A Carta é uma resposta de Heidegger a Jean Beaufret, existencialista francês, que lhe escrevera perguntando pelo futuro do humanismo depois das duas guerras mundiais. Jean Beaufret (1907-1982) era um estudioso da filosofia alemã, aficionado pelo pensamento de Heidegger, e um dos introdutores de sua filosofia na França do pós-guerra (Beaufret visitou Heidegger várias vezes na Alemanha, inclusive em sua velhice).

      Reproduzo um trecho dela (em uma tradução em Espanhol):

      “(…) Sartre expresa de la siguiente manera el principio del existencialismo: la existencia precede a la esencia. Está adoptando los términos existentia y essentia en el sentido de la metafísica que, desde Platón, formula lo siguiente: la essentia precede a la existentia. Sartre invierte esa frase. Lo que pasa es que la inversión de una frase metafísica sigue siendo una frase metafísica. Con esta frase se queda detenido, junto con la metafísica, en el olvido de la verdad del ser. Porque por mucho que la filosofía determine la relación entre essentia y existentia en el sentido de las controversias de la Edad Media o en el sentido de Leibniz o de cualquier otro modo, el hecho es que habría que empezar por preguntarse primero desde qué destino del ser llega al pensar dicha diferencia en el ser entre esse essentiae y esse existentiae. Queda por pensar la razón por la que la pregunta por este destino del ser nunca fue preguntada y la razón por la que nunca pudo ser pensada. ¿O acaso el hecho de que las cosas sean de este modo en lo relativo a la distinción entre essentia y existentia no es una señal del olvido del ser? Podemos suponer que este destino no reside en un mero descuido del pensar humano y mucho menos en una menor capacidad del pensamiento occidental temprano. La distinción entre essentia (esencialidad) y existencia (realidad efectiva), que se encuentra oculta en su origen esencial, domina y atraviesa todo el destino de la historia occidental y de la historia en su conjunto bajo su definición europea.
      Pues bien, la proposición principal de Sartre a propósito de la primacía de la existentia sobre la essentia sin duda justifica el nombre de «existencialismo» como título adecuado a esa filosofía. Pero la tesis principal del «existencialismo» no tiene ni lo más mínimo en común con la frase de Ser y tiempo; aparte de que en Ser y tiempo no puede expresarse todavía en absoluto una tesis sobre la relación de essentia y existentia, porque de lo que allí se trata es de preparar algo pre-cursor (…)”.

      Heidegger portanto considera o Existencialismo como tendo um pé na metafísica e chega a relacionar a tese principal de J-P Sartre com a perspectiva platônica da essência do ser.

      Justamente um dos principais desafios de Heidegger ao iniciar sua empreitada em Ser e Tempo é desvelar, revelar o ser. Na perspectiva de Heidegger, toda a filosofia ocidental a partir de Platão (inclusive) é a própria história do encobrimento do ser, ou do esquecimento do ser. Tanto assim, que o filósofo alemão realiza um movimento de retorno aos pensadores pré-socráticos onde, segundo ele, o encobrimento do ser ainda não havia ocorrido.

      Para Heidegger, uma das formas (senão a única) possíveis de superação da metafísica era pelo resgate da questão do sentido do ser. O filósofo estabelece para si como um de seus objetivos centrais a superação da metafísica (contemporâneo quase perfeito de Heidegger, o também alemão Rudolf Carnap,1891-1970, atribuira-se desafio semelhante mas pela via do reexame lógico e semântico da linguagem. Carnap chega a analisar pelo menos um texto de Heidegger, Que é a metafísica?, tentando demonstrar graves equívocos de coerência lógica no texto, e considerando-o metafísico). Parece incomodar a Heidegger a busca da filosofia, desde Platão, por uma essência do ser. Daí a inspiração surgida pela leitura em Nietzsche da afirmação de que ‘o homem é um animal não catalogado’. Para ele, toda a filosofia que busque uma essência do ser é ainda metafísica. Ora, se um dos desafios aos quais Heidegger se propusera foi o da ultrapassagem da metafísica, não concordaria então em se vincular a uma corrente de pensamento que ele mesmo, como visto acima, considerava metafísica.

      Apesar disso, não resta dúvida que o pensamento de Martin Heidegger causou forte impacto na filosofia existencialista (a exemplo de que fizera a filosofia de S. Kierkegaard, esta do século XIX). A principal obra filosófica de J-P Sartre, O Ser e o Nada, de 1943, tem como uma de suas fortes influências, senão a principal, Ser e Tempo, de Heidegger. A recepção dos trabalhos do filósofo alemão na França, e para os pensadores existencialistas por extensão, foi bastante expressiva, já que tratava centralmente da questão da abertura do ser, mas isso não significa que sua filosofia fosse existencialista.

      Ernildo Stein, em um excelente livro denominado Pensar e Errar: um ajuste com Heidegger (Unijuí, 2011. Livro que eu recomendo fortemente), coloca que se não chegou a haver uma Filosofia de escola heideggeriana, o impacto de seu pensamento e de seu método (fenomenologia hermenêutica e analítica existencial) foi imenso no século XX, seja na própria filosofia, seja na psicanálise, seja na literatura etc. Da consideração de Stein, eu depreendo o seguinte: Heidegger não se vincula a nenhuma escola ou corrente de pensamento existente antes ou depois dele. Seu trabalho surgiu por influência da hermenêutica de Husserl, mas logo derivou para uma forma e método próprios. Não creio, assim, que Heidegger possa ser considerado, no sentido estrito, filosoficamente técnico, como um pensador Existencialista.

      Queria ainda abordar outra questão levantada por Você, Vanna, em seu comentário, que é sobre uma possível unicidade entre o pensamento ou a filosofia de Heidegger I, II e III.

      Os escritos do filósofo alemão, no todo de seu trabalho, levam a três formas de pensar: o Pensar I, que é o pensar típico da Psicologia, o Pensar II, característico da técnica, da lógica, e o Pensar III, que seria o pensar próprio da filosofia. Este Pensar III seria condição de possibilidade para o Pensar I e II, já que ele é o pensar que pensa e antecipa a abertura do ser, permitindo o espaço para as outras formas de pensar. É, como o próprio Ernildo Stein coloca, “o pensar que produz o encontro de ser e ser-aí, onde acontece a verdade existencial”.

      Todavia, é importante não correlacionar diretamente o Pensar I, II e III com um possível Heidegger I, II e III.

      Para os analistas em geral, existem o Heidegger I e o Heidegger II. O Heidegger I é o de Ser e Tempo (1927). O Heidegger II é o dos escritos posteriores. Segundo estes analistas, a segmentação do pensamento do filósofo alemão é importante pois, entre o Heidegger I e o II teria havido uma expressiva mudança conceitual em seu pensamento e, para alguns estudiosos, inclusive um paradoxal retrocesso. O Heidegger I, de Ser e Tempo, seria muito mais avançado, arrojado em suas construções teóricas do que o Heidegger II (escritos posteriores).

      Bem, Ernildo Stein, ao analisar o conjunto da obra de Heidegger, identifica uma linha central em todos os trabalhos do filósofo da Floresta Negra, e argumenta que a intuição fundamental de Heidegger não mudara em nenhum deles, isto é, o encobrimento do ser pela História da Filosofia e a necessidade de seu desvelamento. Se eu compreendo bem o argumento de Stein, seu Heidegger III é uma espécie de visão do conjunto da obra do filósofo. Um alerta, de certa forma, de que as análises até então empreendidas dos escritos do alemão estiveram segmentadas entre Ser e Tempo e os escritos posteriores, como se fosses trabalhos estanques, isolados, apartados. Stein tenta, ao meu ver, sustentar que, se analisado o conjunto dos textos de Heidegger (as suas obras completas), na sua devida sequência de construção e encadeamento, surgiria dali um Heidegger III. Um Heidegger que mostra aos seus leitores a coerência existente entre todos os seus escritos, antes, durante e depois de Ser e Tempo.

      Acerca ainda da questão de se o Existencialismo é um Humanismo, remeto à Palestra proferida por Sartre em outubro de 1945, onde o pensador francês tenta refutar uma série de objeções feitas à filosofia existencialista, acusada que fora, segundo ele, de anti-humanismo por talvez representar um desprezo à realidade humana.

      Sartre, nessa palestra, reafirma o caráter humanista do pensamento existencialista, tentando caracterizar seu propósito central de enfatizar a investigação da condição humana à luz de uma posição ateia dotada de coerência. A ação moral do ser livre de determinismos, condenado que está à liberdade, exige a responsabilidade integral de cada um em ser o que é ou o que virá a ser. Nesse sentido, a posição de Sartre é coerente: o Existencialismo é um Humanismo (note que o título da palestra da Sartre é composto de uma afirmação, e não de uma interrogação).

      Por fim, Cara Vanna, além de novamente agradecer sua atenta leitura, preciso dizer, gentilmente, que tenho outra interpretação para o florescimento do pensamento alemão/germânico nos séculos XVII e XVIII em diante, que se dá através de uma multiplicidades de componentes. Mas isso é debate para outro espaço e momento.

      Muito obrigado Vanna! Sua leitura dos Ensaios serve de motivação para mim, e seus comentários são sempre estimulantes e instigantes.

      Marcelo

  2. Caro Marcelo, seu esforço para tornar Heidegger claro é bastante louvável. O texto está muito bem escrito, embora, por razões óbvias, não consiga escapar das confusões conceituais deste filósofo. Heidegger é um grande erudito, mas um pensador bastante mediano, para não usar palavras mais grosseiras. O fato de ele ter influenciado o século XX não faz dele um gênio, essas influências têm causas históricas e sociais também e não dizem respeito só ao talento ou à capacidade de pensar de alguns. É fato, sem dúvida, de que ele teve grande influência sobre o niilismo e a confusão conceitual que tomaram conta do século XX. Afinal, ele jamais conseguiu chegar a um ponto que fosse sem embaralhar tudo, e não porque o ser é mudança, passagem, devir, mas porque ele não consegue definir nada com clareza. Se definir já é metafísico, pensar também é, falar, criar conceitos… Uma tolice a filosofia de Heidegger. A questão da diferença ontológica mostra bem o raciocínio do filósofo “da floresta negra”: sempre se encobriu o ser, diz ele, porque sempre se identificou o ser com o ente… Pois é… a metafísica torna-se, com ele, o encobrimento do ser. A não metafísica dele quer buscar o ser… haha… Desculpe-me, não contenho o riso quando falo em Heidegger. Superar quer dizer outra coisa também… Quantos delírios heideggerianos… O Da-sein, os outros entes, e um SER, que ele nunca soube o que é e nunca o definiu, mas existe uma diferença entre o ser e o ente, não se esqueçam!… Bem, o problema é de base. Ele é confuso e muito interessado em fazer dele, e não de Nietzsche, aquele que supera a metafísica. Quem quiser, que embarque… mas isso é canoa furada, não leva a nada. Ah, e não é para levar, certo? Errado. Todo pensamento filosófico é uma aposta. Se ele não tem nada a dizer e nem a definir, era melhor ter ficado em silêncio lá pela floresta negra… pelo menos assim não teria tido tempo para apoiar o nazismo quando seus colegas estavam sendo perseguidos.

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