A FILOSOFIA MEDIEVAL E O HUMANO

O IDEAL DE SER HUMANO NA IDADE MÉDIA E O PAPEL DA FILOSOFIA

“No imaginário europeu, a Idade Média representou, antes de mais nada, uma época sombria, de pobreza, ignorância e servidão. Uma mostra desse atraso coletivo é dada pela lenda dos terrores do ano 1000, quando as pessoas, fustigadas pela fome e pelas guerras, julgavam que a ameaça apocalíptica ia se cumprir e, com ela, o fim do mundo (o filósofo José Ortega y Gasset dedicou a sua tese de doutoramento a esse tema). No entanto, a realidade histórica, reconstruída graças aos estudos dos medievalistas, distancia-se muito dessa pintura.” (Andrés Martínez Lorca. Filosofia Medieval. De Al-Farabi a Ockham, 2017).

Conforme mostra Alfredo Culleton em seu texto O filósofo como ideal de homem, um dos papéis destacados pelo homem do Séc. XIII para si seria o da busca de um projeto de filósofo como ideal de homem (ideal de vida), sendo que este ideal de vida estaria baseado em uma nova ética buscada na “salvação” filosófica e na felicidade natural. 

O ponto de partida para essa busca, a partir dos pensadores do período medieval, tanto cristãos (Alberto Magno, Boécio de Dacia) quanto árabes e judaicos (Avicena, Averróis, Maimônides), seria a transposição do pensamento grego de Aristóteles para o período medieval, neste caso, em especial de sua obra Ética a Nicômacos, na qual o filósofo descreve o caminho da felicidade e onde seria ela, a felicidade, a finalidade última buscada por todo o homem, “(…) a mais nobre e aprazível coisa do mundo”.   

A título de contextualização do momento histórico analisado, até o início do Sec. XIII, o pensamento cristão é dominado pelo platonismo e neoplatonismo. O trabalho de Aristóteles era conhecido apenas pelos tratados de lógica, traduzidos para o latim por Severino Boécio. Já ao longo do Séc. XIII, por intermédio de pensadores árabes e judeus, especialmente Averróis, Avicena e Maimônides, o mundo ocidental do medievo toma contato, pela primeira vez, com as obras completas de Aristóteles, “defrontando-se com uma filosofia de uma amplitude e de um rigor conceitual jamais encontrados” (Corbisier, 1988, pág. 155).

O impacto do pensamento aristotélico no meio acadêmico e universidades europeias da época foi extraordinário, e um dos desafios dos mestres e professores da filosofia medieval seria proceder à recepção deste pensamento, conciliando-o, com todo o esforço possível, com o pensamento cristão (Guilherme de Moerbeck, 1215-1286) – foi um dos principais responsáveis pela tradução dos escritos do Estagirita diretamente do grego para o latim, sem passar agora pela interpretação árabe e judaica).

Em uma dessas obras traduzidas e recepcionadas pelo pensamento cristão, a Ética a Nicômacos, Aristóteles descreve que o bem supremo a ser buscado pelo homem é a felicidade (eudemonia), “a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo” e, diz que “é em busca da felicidade que se justifica a boa ação humana”. Aristóteles faz, portanto, da felicidade “a atividade da alma dirigida pela virtude”, por seu exercício e não meramente sua “posse” (Japiassú e Marcondes, pág. 104, 2008). A felicidade é a atividade da alma por essência segundo a virtude e consiste em sua boa realização tanto no sentido moral quanto intelectual.

A felicidade, portanto, para Aristóteles consiste na realização da excelência (o melhor de si), que seria a verdadeira natureza do ser (agir) racional.

Para o filósofo grego, três seriam os possíveis modos de vida do homem:  a) aquela dos busca dos prazeres, onde o ser humano se torna refém de seus desejos; b) a vida política, que se pauta na busca do convencimento do outrem e nesse caminho, a busca da honra; c) e, por fim, a vida contemplativa, que seria a única que detém o caninho da felicidade. A via da vida contemplativa se caracteriza pela busca e alcance do conhecimento e, por conseguinte, da felicidade (eudemonia).

 Essa busca, esse caminho, da vida contemplativa e, portanto, da felicidade (realização da excelência, a verdadeira natureza do ser e agir racional) direcionou o sentido de ideal de homem pretendido e difundido pelos pensadores do período medievo, especialmente os cristãos.

Alfredo Culleton, a partir de Boécio de Dacia, mostra que “aquele que não viver a vida de filósofo não vive a verdadeira vida”, destaca ainda: “a vida filosófica não é apenas um modo de vida entre outros, mas o modelo absoluto da vida humana”. Boécio ressalta especialmente que: “o filósofo é o protótipo de homem”, e conclui: “é mais fácil para um filósofo ser virtuoso do que para qualquer outro”. Para este Pensador, a partir disso, todos os outros (homens) que não vivem dessa maneira não possuem uma vida boa (virtuosa).

COMO O SURGIMENTO DAS UNIVERSIDADE SE CONECTA COM A QUESTÕES RELATIVAS AO IDEAL DE SER HUMANO MEDIEVAL  

Como se vê no texto A ascensão das Universidades, de  C. H. Haskins, as Universidades são um produto caracteristicamente pertencente ao período da Idade Média, a exemplo de catedrais e do parlamento.

Segundo Haskins, apesar das diferentes nuanças com as Universidades dos séculos posteriores, inclusive atuais, sua constituição básica e tradição segue uma linha de continuidade com as Instituições fundadas no Medievo.

Já Terezinha Oliveira, em seu artigo A Escolástica como Filosofia e Método de ensino na Universidade Medieval, procura demonstrar que o conhecimento praticado e ensinado na Idade Média, especialmente a partir do período denominado Escolástica, orientava a forma de pensar e o modo de agir do homem medieval, abrangendo (ou buscando abranger) desde o mais humilde integrante até príncipes e futuros soberanos. 

Segundo a Autora, isto foi possível em razão de que a Escolástica e sua divulgação nas universidades, mosteiros e abadias, era ao mesmo tempo religião cristã e conhecimento, pensamento, greco-romano clássico. Tal forma de orientar o agir, era difundido, divulgado, naquele período, em abadias, mosteiros, escolas e universidades, chegando aos mais humildes inclusive através da religiosidade, mas também a futuros pretendentes a postos de poder (membros da riqueza).

Diz Terezinha de Oliveira: “Não se trata apenas de uma forma específica que os ‘letrados’, os ‘intelectuais’, os ‘teólogos’, encontraram para evidenciar a vida, as relações humanas e praticarem as ciências e, especialmente, a filosofia”. Para a Autora, trata-se de uma nova forma de pensar que orientava o conjunto daquela sociedade, desde o mais humilde até soberanos.

Ao ensinar nas universidades, escolas, mosteiros, abadias, os mestres escolásticos da Idade Média, combinando teologia cristã com o conhecimento clássico da filosofia grega, especialmente em Platão e Aristóteles, expunham a forma como futuros monges, filhos de nobres e futuros dirigentes deveriam agir e pensar, em posições de poder, tanto na esfera laica quanto espiritual, em um modo de totalidade, isto é, percebendo o ser humano e suas duas dimensões: material e mental, e difundindo assim o ideal de humano buscado pelo ensino da época.

Portanto, a filosofia, e seu estudo e prática, no entender dos principais pensadores do período medievo, seria o caminho para o alcance do ideal de realização do humano, excelência da alma e do caráter. 

Marcelo Lorence Fraga

Mestre em Filosofia – PPGF/PUCRS

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

  1. AQUINO, Tomás de. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Clássicos do pensamento político. Petrópolis RJ: Vozes, 1995.
  2. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3ª. ed. Brasília: Ed. UnB, 1992.
  3. ______________. Política. 3ª. ed. Brasília: Ed. UnB, 1997.
  4. ______________. Aristóteles – Vida e Obra. Col. Os Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1999.
  5. Autores vários. As grandes noções de Filosofia. Col. Pensamento e Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
  6. BUNNIN, Nicholas e JAMES-TSUI, E.P. Compêndio de Filosofia. 2ª. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
  7. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª. ed. São Paulo: Ed. Ática,2004.
  8. CORBISIER, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo II – Parte primeira. Filosofia grega. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1984.
  9. ____________________. Introdução à Filosofia. Tomo II – Parte segunda. O pensamento cristão. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1988.
  10. CULLETON, Alfredo. O filósofo como ideal de homem. São Leopoldo RS: Unisinos, 2022.
  11. HASKINS, Charles Homer. A ascensão das Universidades. São Leopoldo RS: Unisinos, 2022.
  12. HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.
  13. __________________. Dicionário de Obras Filosóficas. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002.
  14. JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2008.
  15. LORCA, Andrés Martínez. Filosofia medieval. De Al-Farabi a Ockham. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Salvat, 2017.
  16. Oliveira. Terezinha. A Escolástica como Filosofia e Método de ensino na Universidade: uma reflexão sobre o mestre Tomás de Aquino. São Leopoldo RS: Unisinos, 2022.
  17. PREADEAU, Jean-François (Org.). História da Filosofia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio. Ed. Vozes, 2009.
  18. STEIN, Ernildo e DE BONI, Luís A. (Org.) Dialética e Liberdade. Festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis RJ: Ed. Vozes, 1993.
  19. STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. Col. Filosofia passo-a-passo. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003.
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