A TEORIA ÉTICO-DISCURSIVA DE JÜRGEN HABERMAS

E O ESFORÇO PARA A ATUALIZAÇÃO DA POSSIBILIDADE DE UNIVERSALIZAÇÃO EM ÉTICA

Jürgen Habermas

O filósofo contemporâneo Jürgen Habermas[1], tem realizado esforços significativos no sentido de sustentar a possibilidade de universalização em Ética, como pretendera anteriormente Immanuel Kant em sua doutrina moral, em especial nas obras Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e Crítica da Razão Prática (1788). Para tanto, Habermas, herdeiro da tradição do pensamento crítico desenvolvido pela assim denominada ‘Escola de Frankfurt’, mas com uma abordagem de viés propositivo para a crítica da realidade social, propôs-se ao desafio complexo[2] de construção de uma Teoria da Ação Comunicativa e, tendo esta como base de fundamentação, avança para a defesa da possibilidade de uma Ética do Discurso, ou Ética-discursiva. Autores como Karl-Otto Apel, a quem Habermas se considera tributário, e outros[3], também empreenderam trabalhos nesse sentido. Contudo, a obra de Habermas na direção da fundamentação de uma teoria do agir comunicativa, foi a que adquiriu maior relevância, extrapolando a esfera da própria Filosofia, inserindo-se em vários outros contextos de debates (Sociologia, Filosofia do Direito, Educação & Pedagogia, apenas para mencionar algumas áreas de conhecimento).

O tema a ser abordado neste ensaio é, portanto, a Ética do Agir Comunicativo, e a possibilidade de reconstrução de uma abordagem ética de pretensão universal, inspirada na doutrina moral do filósofo moderno Immanuel Kant (1724-1804), e reformulada com base em uma forma de razão processual e colaborativa, no esforço realizado pelo filósofo alemão contemporâneo Jürgen Habermas (1929-) a partir de sua Teoria da Ação Comunicativa e Ética do Discurso (ou do Agir Comunicativo). A Teoria da Ação Comunicativa do filósofo alemão tem, entre seus principais objetivos, realizar uma crítica da sociedade moderna, reduzindo suas deficiências e patologias, e sugerindo novas vias para a reconstrução do projeto de recuperação da razão. E, acima de tudo uma racionalidade voltada ao entendimento, isto é, uma busca de acordo entre sujeitos com competência linguística e interativa.

A temática é relevante especialmente no contexto atual de grandes conflitos internacionais, radicalização de um discurso totalitário e de ódio, praticado por grupos de extrema-direita, em uma visão reducionista, redutora e negativa das capacidades emancipatórias e de autorrealização do ser humano e de suas potencialidades (Amartya Sen, 2010), sob a perspectiva de um pensamento pós-moderno e pós-metafísico (Lyotard,1998; Vattimo, 2016; Bauman, 1997 e2013), e que vise, acima de tudo, a possibilidade de “inclusão do outro” (Habermas, 2002), e a defesa, universal, dos valores mais básicos da humanidade – liberdade, autodeterminação, direito à vida e moradia, direito à emancipação e à expressão –, isto é, os valores principais contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos[4]Universal Declaration of Human Rights –, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resol. 217 A III), em 10 de dezembro de 1948.

Na sequência, para que se possa analisar e debater as implicações de uma possível fundamentação do aspecto e do potencial universalizante da teoria ético-discursiva de Jürgen Habermas, serão explorados aspectos da Teoria da Ação Comunicativa, da doutrina moral elaborada por I. Kant, em especial na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática, da Ética do Agir Comunicativo, de Habermas e, por fim, a possibilidade de universalização de sua ética-discursiva.

A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA DE JÜRGEN HABERMAS[5]

Buscando avançar em relação à teoria crítica elaborada pela Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas desenvolve, em sua obra Teoria da Ação Comunicativa[6] (Theorie des kommunikativen Handels), isto é, uma construção teórica que visa servir de apoio auma nova teoria crítica da sociedade. Para Habermas, o potencial da racionalidade se concretizará através da ação comunicativa, onde o sujeito é capaz de orientar sua ação com base em pretensões de validez intersubjetivamente conhecidas da comunidade com quem se relaciona, tendo como requisitos a plena capacidade de comunicação, a autonomia para agir e a responsabilidade. O Autor desenvolve a teoria da ação comunicativa orientando-a na busca processual do entendimento e da posterior coordenação das atividades dos sujeitos capazes, autônomos e responsáveis. Esta ação, ou interação, ocorre no plano social, na instância que Habermas denomina de mundo da vida. Em Habermas, o mundo da vida é o espaço das relações sociais onde os participantes têm à sua disposição um conjunto de códigos de referência, valores, normas, que lhes permitem elaborar as interpretações voltadas ao consenso. A possibilidade de debate racional e, consequentemente, da atividade comunicativa, tem como pano de fundo o mundo da vida, que nada mais é do que o contexto normativo e valorativo no qual os participantes se movimentam e interagem, mediatizados pela cultura, visando o entendimento.

Conforme Habermas, a razão não está centrada no sujeito epistêmico, como para a concepção kantiana, ou seja, no sujeito autonomamente capaz de apreensão da realidade, onde a cognição é vista como uma relação entre um sujeito isolado e o objeto, que é uma visão tipicamente kantiana. A razão, na perspectiva de Habermas, desloca-se para a linguagem e a possibilidade de intersubjetividade que ela proporciona. Assim, a teoria comunicativa de Habermas tem como pilares fundamentais a concepção dialógica da razão e o caráter processual da verdade, através da busca do consenso. Ao realizar a substituição do paradigma da consciência (de Kant) pelo paradigma da linguagem, ressalta que a linguagem não deve ser vista apenas enquanto categoria sintática ou semântica, mas fundamentalmente como forma de expressão e entendimento. Diz o autor: “Se partimos do pressuposto de que a espécie humana subsiste através de atividades socialmente coordenadas de seus integrantes e de que esta coordenação se estabelece por meio da comunicação, e fundamentalmente por meio de uma comunicação tendente para um acordo, então a reprodução da espécie exige também o cumprimento das condições de racionalidade imanentes à ação comunicativa.”[7].

O modelo comunicativo de ação de Habermas distingue ação de comunicação. A linguagem, ressalta o autor, é um meio de comunicação que serve ao entendimento, ainda que os atores, ao buscar este entendimento para coordenar suas ações, persigam, cada um, seus próprios fins. Desse modo, os conceitos de ação social distinguem-se pela forma como especificam a coordenação das ações teleológicas – destinadas aos fins – dos distintos participantes em uma interação.

Jürgen Habermas (1987[a]) distingue quatro categorias de ação: a) ação teleológica; b) ação normativa; c) ação expressiva; d) ação comunicativa. Estas quatro categorias de ação são descritas a seguir

a) Ação teleológica: é aquela em que a ação é realizada por uma só pessoa em busca de um certo objetivo. Ela será estratégica na medida em que as decisões e o comportamento de pelo menos uma outra pessoa for incluída no cálculo correspondente aos meios e fins a serem utilizados. Esta forma de ação é racional em função do cálculo feito pelo agente sobre o meio mais eficaz para o alcance do fim desejado. No modo estratégico de ação, os agentes se relacionam como meios objetificáveis ou obstáculos para a realização dos seus fins e, por causa disto, pode ser interpretado como utilitarista já que se supõe que o ator vá eleger seus meios e fins sob o ponto de vista da maximização de sua expectativa de utilidade;

b) Ação normativa: caracteriza-se como sendo aquela em que a intenção primária é atender a expectativas de caráter recíproco, mediante o ajuste da conduta a normas e valores compartilhados. Deste modo, a busca por objetivos pessoais poderá ser neutralizada pelos deveres sociais dos agentes ou mesmo pelos padrões estéticos. Os que se empenham em ações normativas também necessitam calcular as consequências objetivas de seu agir em relação aos demais agentes. A ação será racional na medida em que seja adequada aos padrões de comportamento socialmente aceitos em dada comunidade cultural e que atenda ao interesse geral das pessoas afetadas;

c) Ação dramatúrgica ou expressiva: este tipo de ação social tem por objetivo a projeção de uma imagem pública. É constituída pela representação das intenções do ator através de seus atos de forma a permitir que o outro compreenda sua legitimidade e justificativa. Busca obter uma determinada resposta de uma certa audiência e, por isto, é implicitamente estratégica. Contudo, para que seja racional – no sentido não-estratégico – , necessita ser sincera e possuir autênticas intenções declaradas, ou seja, os demais atores envolvidos não devem ser enganados;

d) Ação comunicativa: esta forma de ação acontece quando dois ou mais atores sociais buscam chegar a um acordo voluntário e cooperativo sobre determinado aspecto. A ação comunicativa envolve um esforço explícito de alcançar um acordo sobre a totalidade das reivindicações de validade. Embora os atores possam usar as outras formas de ação para comunicarem-se e coordenarem seus esforços, não necessariamente o farão visando atingir um livre acordo. Poderão agir estrategicamente, forçando os demais atores a contribuir com seus objetivos, utilizando-se de artifícios como ordens, ameaças, mentiras e proposições manipulativas, o que descaracterizaria a ação comunicativa em torno de consenso e entendimento mútuo.

Destas quatro categorias de ação resultam três tipos de ação:

1) Ação instrumental: ação orientada para o êxito, e cujo grau de eficácia da intervenção que esta ação representa pode ser avaliada através da observância de regras de ação técnicas. A este tipo de ação pode estar associada uma interação social, mas não necessariamente, já que pode representar apenas um ato individual;

2) Ação estratégica: é aquela em que a ação orientada ao êxito – instrumental – considera, racionalmente, as decisões e o comportamento de pelo menos uma outra pessoa, de modo a realizar o cálculo egocêntrico correspondente aos meios mais eficazes a serem utilizados para atingir os fins predeterminados. A ação estratégica representa, em si mesma, uma ação social;

3) Ação comunicativa: quando os planos de ação dos atores estão orientados não pelo cálculo egocêntrico de resultados, mas por atos de entendimento. Os fins individuais são perseguidos, mas sob a condição de que os respectivos planos de ação possam harmonizar-se entre si sobre uma base compartilhada de interesses, buscando-se um acordo racional livre de pressões ou imposições, estabelecido através de convicções comuns.

Evidentemente que a ação comunicativa também representa, em si mesma, uma ação social. Mas, a atitude de orientação para o entendimento – ação comunicativa –, torna os participantes da interação dependentes uns dos outros. São dependentes das atitudes de afirmação ou negação de seus destinatários, porque somente podem chegar a um consenso constituído sobre uma base de reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez. Deste modo, os participantes de uma interação que tratam de coordenar em comum acordo seus respectivos planos de ação, somente os executam sob a condição de consenso sobre qual a melhor maneira de executá-los, que será obtida através de uma postura relativizadora, isto é, que tenta compreender a visão de mundo do outro, colocando-se em seu lugar, entre os interlocutores.

A FILOSOFIA MORAL DE IMMANUEL KANT

O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) desenvolver sou doutrina moral sob a forma de uma Ética deontológica (do grego antigo, deon, obrigação), que está baseada no dever, e assentada na razão humana (do indivíduo), pressupondo que o ser humano é capaz de agir racionalmente na direção do seu dever. O dever, para Kant, é o que torna os homens seres morais. Como sustenta Christian Hamm, Doutor em Filosofia pela Universidade de Hamburg e Professor da Universidade Federal de Santa Maria, o filósofo alemão Immanuel Kant é, em geral, considerado o pensador mais importante e mais influente da era moderna da História da Filosofia (Hamm. In Pecoraro, 2013).

Em sua abordagem da Filosofia moral, o Pensador alemão, especialmente na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (de 1785), e em sua Crítica da Razão Prática (de 1788), busca construir uma teoria (embora no ramo do saber prático) baseada no dever e assentada na razão humana, onde se pressupõe que o homem (ser humano) é capaz de agir racionalmente na direção do seu dever. O dever, para Kant, deve-se dizer, é o que torna os homens seres morais. Para o Filósofo alemão, a Ética não deve ser tomada com um “meio” para o alcance de algo, ainda que pela busca da felicidade ou mesmo outro fim, mas sim que ela (a Ética) é “a doutrina dos objetivos e fins em si mesmos”, e também que ela está relacionada com o respeito absoluto pela dignidade das pessoas.

Na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant expõe o princípio moral buscado a partir dos conceitos da razão pura, e não no império das inclinações e vontades humanas. Este princípio diz que: “devo proceder sempre de maneira que se possa querer também que a minha máxima se torne lei universal.”. Deste princípio moral universal, ou imperativo categórico, desdobram-se em outros dois princípios morais básicos: a) o de universalidade (universalização em ética); e b) o da humanidade, ou não instrumentalização dos seres humanos, que devem ser considerados, sempre, como fim (finalidade, fim último, objetivo final) e não meramente como “um meio”, ou como um “instrumento” para o alcance de outros fins. A razão, portanto, é elemento central da filosofia moral kantiana, que está conectada diretamente com a liberdade de agir do ser racional – indivíduo moral –, que impõe-se a si mesmo, como agente racional, barreiras a estes estímulos externos (conceito de autonomia, em Kant).

Para o Filósofo alemão, apenas o dever moral, exercido no espaço de liberdade da razão orienta o agir. Em Kant, todo o ser racional existe como um fim em si mesmo, não devendo, portanto, ser tratado como “meio” (instrumento de algo). Tal consideração – pessoa como “meio” – faria com que os indivíduos não detivessem em si mesmo valor absoluto.

Diz Immanuel Kant, na Metafísica dos Costumes: (…) em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm somente um valor condicional, pois, se não existissem as inclinações e as necessidades que nela se baseiam, o seu objeto seria sem valor.”.

Dessa forma, na filosofia moral kantiana, a existência de regras morais absolutas é um dos seus elementos centrais. A partir disso, a adequação da ação moral será referenciada pelo atendimento e obediência a deveres absolutos. O juízo moral está respaldado na própria noção de que a razão é o guia do agir moral, e sua esfera original é a consciência do dever, conduzida pelo ato de vontade em uma esfera de ação livre. Isto é, a esfera de decisão, portanto, é a razão (consciência) do sujeito/indivíduo moral, independente dos fatores externos. Assim, o agir virtuoso, moralmente correto, é dirigido pela razão, que conhece o bem, o deseja e guia, direciona, a vontade. Na ética deontológica, o centro de dever e de decisão está localizado na consciência do indivíduo (eu, self) enquanto ser racional (dotado de razão).

Na esfera da universalidade, ou dos princípios universais, Kant, apresenta em sua Crítica da razão prática, um dos fundamentos mais centrais no desenvolvimento de sua teoria ética, isto é, o imperativo categórico que afirma: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal.” (Crítica da razão prática, pág. 49).

O agir moralmente é o agir em acordo com o princípio baseado no imperativo categórico. O princípio determina que a ação moral é aquela que pode ser universalizada, guiada que é pela razão e pela liberdade. De certo modo, então, o imperativo categórico de Kant é, além de universalizante (com valor universal), também “vinculante” para os agentes racionais na justa medida em que estes agentes (indivíduos) são dotados de razão (seres racionais).

Descumprir ou desconsiderar o imperativo categórico, para Kant, de certa forma seria, não apenas agir com ausência de moralidade, mas também com “irracionalidade”. O Filósofo alemão procura demonstrar, especialmente na Crítica da razão prática,que a lei moral decorre da ideia de liberdade, sendo a razão moral, portanto, de caráter prático. A liberdade, assim descrita, no sentido racional, determinaria por si mesma a vida moral. Para Kant, a liberdade é elemento fundante no enfrentamento da questão moral. Não há opção de escolha moral, segundo o Pensador alemão, fora do âmbito da liberdade, o que resulta no conceito de autonomia.

Outrossim, o imperativo categórico de Kant diz ao sujeito moral como agir, e a força moral deste decorre, portanto, da própria razão, e nele – imperativo categórico – está contido seu sentido de pretensão de universalidade de seu modelo ético.

A ÉTICA DO DISCURSO, OU A TEORIA ÉTICO-DISCURSIVA DE HABERMAS

Para Habermas, nas modernas sociedades as antigas bases de interação simbólica foram dissimuladas pelos sistemas de conduta de ação racional com propósito, ou ação instrumental, e a interação simbólica – ação de comunicação – somente é permitida em enclaves bastante residuais ou marginais. Na sociedade moderna, a lógica da racionalidade instrumental, que tem por fim ampliar o controle da natureza e o desenvolvimento das forças produtoras, acabou tornando-se a lógica da vida humana em geral, aprisionando a própria subjetividade do indivíduo.

Nas sociedades de capitalismo avançado, conforme Habermas, a comunicação entre os atores sociais tornou-se distorcida e massificada, passando a adquirir o caráter de ação estratégica, voltada apenas ao próprio êxito, condicionada pelo interesse monetário e pelo exercício do poder, impedindo assim a ação comunicativa, voltada para o entendimento. Por isto Habermas, na construção de sua teoria crítica da sociedade, entende necessário aprofundar o exame da racionalidade e desenvolve a Teoria da Ação Comunicativa (examinada anteriormente) como elemento de compreensão para a fundamentação de sua Ética do Discurso, que é uma teoria da moral que recorre à razão para sua fundamentação.

O autor parte do conceito de razão reflexiva de Kant para desenvolver o conceito de razão comunicativa. Assim, enquanto na razão kantiana o juízo categórico está fundado no sujeito e supõe uma razão monológica, a razão comunicativa supõe o diálogo, a interação entre os indivíduos do grupo, mediado pela linguagem e pelo discurso (Habermas, 1998).

No capítulo A reformulação discursiva da ética kantiana, de seu livro Kant e Habermas, Delamar V. Dutra mostra que a abordagem de Jürgen Habermas, em seu esforço de resgate de uma teoria moral com pretensão universalizante, e que a ética discursiva, e seus contornos teóricos, se move a partir da perspectiva da ética kantiana. Habermas afirma que: “(a) a posição kantiana pode ser reformulada no quadro de uma ética discursiva e (b) que ela pode ser defendida contra as posições do ceticismo axiológico[8] . (In Dutra, 2002, p. 131).

A razão comunicativa defendida por Habermas, base de sua ética discursiva, é enriquecida por ser processual, construída pela interação entre os sujeitos enquanto seres que se posicionam criticamente frente às normas. A validade das normas, portanto, não deriva de uma razão abstrata e universal, tampouco depende da subjetividade de cada um, mas do consenso encontrado a partir do grupo, do conjunto dos indivíduos e, assim, a subjetividade se transforma em intersubjetividade. A ação comunicativa supõe o entendimento entre os indivíduos que buscam, pelo uso de argumentos racionais, convencer o outro a respeito da validade da norma, permitindo um avanço para uma sociedade baseada na espontaneidade, na solidariedade e na cooperação. São elementos, para Habermas, da razão comunicativa: a) Auto-realização; b) Entendimento; c) Julgamento ético; d) Autenticidade; e) Valores emancipatórios; f) Autonomia.

Habermas estabelece o julgamento ético como sendo um elemento fundamental para a ação comunicativa, já que nesta forma de ação social os interesses do outro são sempre levados em consideração. Uma das condições básicas para a ação comunicativa é exatamente a responsabilidade do sujeito, que está em sua capacidade de orientar a ação através de pretensões de validez (pretensões de validade). Estas pretensões de validade estarão, no agir comunicativo, sujeitas à crítica valorativa do interlocutor, transformando-se, assim, em um elemento fundamental do debate racional.

Para Habermas, os processos de entendimento têm como objetivo acordos que estejam apoiados em conteúdos racionalmente motivados, sem imposições ou estratégias previamente calculadas, que dissimulem intenções camufladas. Assim, o acordo, estabelecido com base na ação comunicativa, deve estar apoiado em convicções comuns (Habermas, 1987 [a]).

Em Consciência moral e agir comunicativo, o Autor afirma que: “De acordo com a Ética do Discurso, uma norma deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos [possuir relação com] por ela cheguem, ou possam chegar, enquanto participantes de um Discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma. Esse princípio discursivo (D) (…) [é apresentado] a propósito da fundamentação do princípio da universalização (U), já pressupõe que a escolha pode ser fundamentada.”. (J. Habermas. In Dutra,2002, p. 174).

O Filósofo alemão estabelece, em sua teoria discursiva da ética, dois princípios fundamentais– Princípio da Universalização (U) e Princípio Discursivo (D). São assim definidos pelo Autor (1989, p. 147):

  • Princípio da Universalização (U): Toda norma válida tem que preencher a condição de que as consequências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo, possam ser aceitas ser coação por todos os concernidos.
  • Princípio Discursivo (D): Toda norma válida encontra assentimento de todos os concernidos, se eles puderem participar de um Discurso prático.

O princípio da universalização (U) fornece uma regra de argumentação que seria o núcleo de uma teoria moral, que se exprime, fundamentalmente, no princípio da ética do discurso (D). Embora, portanto, de inspiração marcadamente kantiana, a ética do discurso tem na linguagem argumentativa o critério de procedimento para a fundamentação racional de normas morais. Como mostra Jaime José Rauber: “Embora a ética do discurso encontre as suas raízes na teoria moral kantiana, há uma diferença fundamental entre as duas propostas: em Kant, cada sujeito em seu foro interno determina o que é e o que não é (objetivamente) moral (…) [na] ética do discurso, as questões morais são resolvidas dentro de uma comunidade de comunicação.” (1999, p. 57).

Essa diferença fundamental mostra que, no esforço habermasiano de construção de uma teoria ética, a razão solipsista, monológica, não é considerada mais suficiente para o equacionamento das questões de juízo moral, que seriam agora resolvidas com base em uma razão dialógica, comunicativa, que irá orientar o comportamento mais adequado na esfera de um conflito moral. Assim, a validade ou não de uma determinada norma é deliberadas pelos participantes de uma comunidade comunicacional formada por indivíduos (sujeitos morais) capazes de linguagem e de ação.

CONCLUSÃO

Expostas as abordagens da teoria da ação comunicativa, de J. Habermas, a doutrina moral de caráter deontológico (dever, obrigação) de I. Kant e, a própria defesa de uma ética discursiva, também desenvolvida por Habermas, se pode, a título agora de conclusão, debater-se a possibilidade de pretensão de universalidade da ética do agir comunicativo sustentada pelo Filósofo alemão contemporâneo.

A pergunta a ser enfrentada nesta seção final é acerca da possibilidade e do potencial de validez universal para a proposta de reconstrução da moral kantiana desenvolvida por Jürgen Habermas. A pergunta lógica da daí decorre, caso a resposta à questão anterior seja afirmativa, é qual espectro de universalidade se pretende, isto é, se as normas morais deverão ser válidas em um sentido absoluto ou se trata-se da possibilidade de um universal que dependerá de um certo contexto ou circunstâncias socioculturais. É o que será analisado nesta conclusão.

Habermas, ainda no texto Consciência moral e agir comunicativo, diz que sua teoria discursiva da ética faz parte de um programa de fundamentação “não muito presunçoso” (pretensioso), muito embora ela defenda teses universalistas, “teses muito fortes”, segundo ele, mas que “reivindica para essas teses um status relativamente fraco.” (1989, p.143). Em sua fundamentação da ética-discursiva, destaca que o discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da validade de normas consideradas hipoteticamente. Esse”proceduralismo” (método, procedimento), segundo Habermas “assegura que a ética do discurso possa se distinguir de outras éticas de caráter cognitivista, universalista e formalista, como por exemplo, a teoria da justiça de Rawls.” (1989, p. 149).

Portanto, a Ética-discursiva desenvolvida por J. Habermas não possui um caráter normativo intrínseco, isto é, não estabelece os padrões de “certo ou errado” para o agir moral. Por ser de configuração e estruturação dialógica, a adequação do agir às normas se dá dentro de um esforço comunicacional de busca pelo consenso. Seu aspecto e pretensão de universalidade reside no procedimento.

Os dois princípios fundamentais – “(U)” e “(D)” – da ética do agir comunicativo (ética-discursiva), construídos por Habermas articulam-se dinamicamente entre si e parecem poder ser estabelecidos para a decisão de conflitos morais em qualquer contexto, tendo-se por base a ideia central de livre participação e anuência dos participantes daquela comunidade de fala, sem que estabeleçam, no entanto, um caráter normativo absoluto. Nesse sentido a sua possibilidade de universalização. Como já mencionado, a pretensão de universalidade da ética do agir comunicativo está em sua dinâmica de estruturação e de procedimento. Como mostra Jaime Rauber, a validade de uma norma é mediada pela busca de consenso de uma comunidade de falantes, e aquela norma que, nessa estrutura dialógica, não puder contar com o assentimento de todos os participantes, no contexto de um discurso prático, não será aceita então como válida.

Este breve enseio compreende, portanto, ser viável a possibilidade de universalização em Ética, em especial a partir do modelo comunicativo e dialógico desenvolvido pelo filósofo alemão Jürgen Habermas em sua Ética-discursiva.

Conforme aponta Jaime Rauber (1999) louvável o esforço e o valor que detém uma proposta ética universalista, que se contraponha a um relativismo ético, mas que possa respeitar, em paralelo, valores culturais locais, desde que não legitimem procedimentos que venham a ferir os valores humanos mais essenciais. Respeitar valores culturais locais, não implica, então, assentir como o que é injusto ou imoral.

A Ética, normativa que é em sua própria essência, no sentido de orientadora do agir humano socialmente integrado, e é ela que poderá auxiliar o indivíduo na sua ação e escolha em entre o justo e o injusto, o moral e o não-moral, em especial à luz de um modelo de agir ético baseado na intersubjetividade, na comunidade comunicativa, e não mais apenas na esfera individual e subjetiva do indivíduo racional, como na doutrina moral kantiana.

Como diz o educador brasileiro Paulo Freire, em sua Pedagogia da Autonomia: “Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana. Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para Ser Mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente, não como um a priori da história.” (2022, pp. 19 e 20).

Portanto, ainda que em um contexto de pós-modernidade, do final das grandes “meta-narrativas”, no dizer de J.-F. Lyotard, ou de “modernidade líquida”, nas palavras de Z. Bauman, há espaço, e necessidade, de uma abordagem ética valorativa e normativa (normatividade moderada e que preze valores locais que não firam a dignidade humana) que pretenda a defesa e a valorização dos valores humanos mais fundamentais, a exemplo daqueles contidos na Declaração Universal dos Direitos do Ser Humanos. Nesse sentido – postulação de uma Ética com pretensão universalizante –, a proposta da Ética-discursiva de Jürgen Habermas, ainda que passível de críticas, ou mesmo que permita aprimoramentos, parece ser um caminho viável e possível de ser trilhado.

A Teoria Ético-discursiva é, portanto, uma alternativa contemporânea atualizada e viável para a sustentação de uma ética valorativa e universalizante, que preze os valores fundamentais da vida humana associada.

Marcelo L. Fraga

Mestre em Filosofia – PPGF/PUC-RS

Mestre em Adm. de Empresas – PPGA/UFRGS

[1] Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão, nascido em Düsseldorf, 1929, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Bonn, Alemanha, aos 25 anos de idade. Foi professor de Filosofia em Heidelberg e de Filosofia e Sociologia em Frankfurt. Integrou a chamada Escola de Frankfurt – Grupo de estudos sociais vinculado ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt–, primeiro, como assistente de Theodor Adorno e, posteriormente, integrando a “segunda geração” deste grupo de pesquisadores. Foi gradativamente dissociando-se desta corrente de pensamento por entendê-la como, cada vez mais, produtora de uma teoria crítica reducionista e pessimista da realidade social. Sua obra mais central é a Teoria do Agir Comunicativo, ou Teoria da Ação Comunicativa, publicada na Alemanha, em 1983, em dois volumes.

[2] Desafio complexo porque a Teoria da Ação Comunicativa proposta por Jürgen Habermas envolve, em sua construção, aspectos inerentes à Sociologia, à Filosofia, ao Direito, à Teoria Crítica, à busca de emancipação da Razão, à defesa da Democracia, à tentativa de construção de uma possível Teoria Ética valorativa do ser humano e com princípios de universalização.

[3] K-Otto Apel e seus discípulos – Wellmer, Böhler, Kullmann etc. – a chamada ‘Escola de Erlangen – P. Lorenzen, Kamlah, Lorenz, Schwemmer etc.

[4] Disponível em https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights

[5] Evidentemente, não é pretensão deste estudo, nem é seu escopo, abordar amplamente toda a construção e os desdobramentos da teoria habermasiana, cuja complexidade pode ser comprovada pela quantidade e pelo renome dos autores que sobre ela se debruçam – Anthony Giddens, Martin Jay, Richard Rorty, Thomas McCarthy e David Ingram, somente para citar alguns –, sejam estas abordagens críticas ou complementares.

[6] Tradução livre para o idioma português do título da edição espanhola.

[7] Tradução livre para o português, realizada a partir da versão espanhola.

[8] No sentido de ceticismo quanto a teoria/questão dos valores, axiologia.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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  25. REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. 2ª. ed. Petrópolis RJ: Ed. Vozes, 2009.
  26. ROHDEN, Luiz. Sobre a arte de escrever Filosofia filosoficamente. Material didático da Disciplina Leitura e Escrita de Textos Filosóficos.
  27. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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