ÉTICA NORMATIVA

CARÁTER, UM MOTOR CONFIÁVEL DA AÇÃO?

SERIA O CARÁTER UM MÓBIL CONFIÁVEL NA ORIENTAÇÃO DA AÇÃO OU OS AGENTES MORAIS ATUAM E DECIDEM POR MOTIVOS EXTERNOS, TAL COMO A OBEDIÊNCIA A UMA AUTORIDADE?

A Ética normativa é aquela área que estuda o aspecto normativo, prescritivo, da ética, isto é, o segmento da Ética que avalia sua capacidade de dizer ou determinar como o sujeito moral deve agir em determinadas situações.

Alguns analistas entendem, até mesmo, que toda a Ética, a Ética em seu campo mais amplo de estudo, é necessariamente normativa. Ou seja, quando falamos em ética, já estaríamos falando em normatividade, em ética normativa (prescritiva).

Neste contexto, um debate bastante importante é se o Caráter do sujeito (indivíduo) moral é determinante (ou um direcionador) para as escolhas e juízos morais em seu agir.

Aqui neste ensaio, o ponto central da análise será: o caráter é de fato um elemento confiável em nossas ações, em nosso agir moral?

 Desta questão orientadora decorre outra: as influências externas ao caráter moral, os eventos “de fora” – autoridade, ideologia, natureza episódica de um evento, contexto sociocultural etc. –, podem influenciar decisivamente em nossas ações?

Estes, portanto, são os aspectos cruciais que devem ser explorados no presente texto, ou seja:

  1. O caráter moral, intrínseco ao ser humano, é o elemento decisivo, majoritário, determinante em nossas ações de cunho ético? Ou,
  2. Nosso agir moral é influenciado e direcionado por aspectos externos à nossa razão, à nossa consciência, isto é, é guiado por eventos sociais tais como ideologias, autoridade, situações episódicas, contexto sociocultural?   

Dwight Furrow, no texto Qualidades do caráter moral, logo de início, argumenta que para o enfrentamento destas questões é preciso explorar o seguinte aspecto: o que significa ser uma boa pessoa?

Para o Autor, correntes éticas como o utilitarismo (J. Bentham [1748-1832] e J. S. Mill [1806-1873, p. ex.] e a deontologia (I. Kant [1724-1804], talvez como seu principal representante – muito embora o termo, a expressão, tenha sido cunhada por Bentham) centram sua atenção para quais ações podem ser definidas como certas ou erradas, e estabelecem a “boa pessoa” como sendo aquela que adota ações corretas e evita, repele, ações erradas. Contudo, seu foco mais específico é mesmo o que seria, ou não, uma ação correta.

Segundo Furrow, a assim denominada Ética do cuidado, desloca esse foco de discussão, direcionando-o para as ações que aspiram o cuidado com o outro. A baliza para aferir se determinadas ações são corretas ou não é se elas levam em consideração o cuidado com o outro, com as demais pessoas.

Em certa oposição à Ética do cuidado, a Ética das virtudes, ética aristotélica, define o campo de atuação do agir ético pela virtude, pelo bem e pela obrigação moral. Conforme Marilena Chauí, em seu Convite à Filosofia, Aristóteles expande a noção socrática de consciência moral acrescentando a ela a fundamental ideia de vontade guiada pela razão.

Essa abordagem é retomada mais à frente pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), e sua Ética deontológica (do grego antigo, deon, cuja tradução seria dever, obrigação), que está baseada no dever, assentada na razão humana (do indivíduo), e pressupõe que o homem (ser humano) é capaz de agir racionalmente na direção do seu dever. O dever, para Kant, é o que torna os homens seres morais

A ideia do dever, orientado pela virtude, também é abordada por pensadores medievais, mas através da mediação da divino, das leis divinas). Kant, no entanto, ao desenvolver uma teoria moral essencialmente fundamentada na razão humana (racionalidade), de certa forma rejeita teorias éticas cuja determinação do princípio moral advenha de uma origem externa, tais com os preceitos divinos, o supremo bem, ou Deus (D. Marcondes, 2013).

Na esfera da universalidade (princípios universais), Imannuel Kant, apresenta ainda, em sua obra a Crítica da razão prática, um dos fundamentos mais centrais no desenvolvimento de sua teoria ética, isto é, o imperativo categórico que afirma: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal.” (Crítica da razão prática, pág. 49).

Nesse mesmo sentido, em Fundamentos da Metafísica dos costumes, Kant desenvolve o imperativo da moralidade: “O imperativo categórico é, pois, um só, e em verdade este: age somente de acordo com aquela máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torno uma lei universal.” (In Marcondes. Textos básicos de Filosofia, p. 123, 2013).

Dessa forma, esquematicamente, poderíamos resumir as duas abordagens:

  1. Ética das virtudes/deontológica: a razão é o guia da vontade e, por conseguinte, do agir moral. A esfera de decisão, portanto, é a razão (consciência) do sujeito/indivíduo moral, independente dos fatores externos. Isto é, o agir virtuoso, moralmente correto, é dirigido pela razão, que conhece o bem, o deseja, e guia a vontade;
  2. Ética do cuidado: como mostra Furrow, a Ética do cuidado inspira-se na ideia de ‘cuidado’ trazida por M. Heidegger e no conceito de felicidade, quando por meio de suas ações, o ser humano busca fazer o bem e, nesse caminho, alcança a própria felicidade. O ‘cuidado’ aqui possui uma conotação de buscar preservar e nutrir, preservar, dar suporte às pessoas e coisas com as quais o agente moral possui contato próximo.

Há, então, nas duas abordagens – Ética das virtudes/Ética deontológica e Ética do cuidado – uma expressiva e, ao mesmo tempo, singular diferença.

Se a Ética das virtudes/deontológica possui sua fonte original do agir na dimensão interna do indivíduo – razão, consciência, na estrutura racional interna da mente – a Ética do cuidado, por sua vez, tem sua força motriz na relação do eu com o outro (seres, objetos), isto é, seu eixo central está baseado na relação com o outro e a partir de motivações externas, ou seja “o outro está necessitando de cuidados”, “o outro precisa de apoio para seu desenvolvimento” (grow, conforme Milton Mayeroff – On caring. In Zoboli, A redescoberta da ética do cuidado: o foco e a ênfase nas relações, 2004).

Segundo Furrow, o cuidado gera um envolvimento genuíno com o ser o ou objeto que se cuida, uma espécie de processo de submissão. Para o Autor, o valor real daquilo que se cuida se revela no próprio processo do cuidar, sendo o envolvimento com o ser/objeto cuidado um legítimo processo de descoberta. As particularidades, individualidades da pessoa cuidada se revelam, são descobertas, durante o processo de cuidar (Material didático da Disciplina, p. 144).

Portanto:

  • Na Ética das virtudes/deontológica (dever), o centro de decisão (escolha moral) está localizado no eu (self), na consciência, na razão (visão de indivíduo, subjetividade);
  • Já na Ética do cuidado, o foco está na relação, relação com o outro, com o mundo, com os demais seres e coisas, com o contexto etc.

AUTONOMIA OU HETERONOMIA

Expostas estas duas linhas éticas, é importante também explorar os conceitos de Autonomia e de Heteronomia.

Para Immanuel Kant, a liberdade é elemento fundante no enfrentamento da questão moral. Não há opção de escolha moral, segundo o Pensador alemão, fora do âmbito da liberdade, o que resulta no conceito de autonomia

De outro lado, o Filósofo alemão, no desenvolvimento de sua teoria moral, traz também a ideia de heteronomia, que seria o oposto da autonomia. Se na autonomia acorre a liberdade de escolha, liberdade de decisão, a liberdade para o estabelecimento do juízo moral, na heteronomia, o indivíduo se encontra inserido em um determinado contexto – social, cultural, normativo, legal, educacional etc. – que limita e, ao mesmo tempo, orienta ou submete seu agir, suas escolhas.  

Já na Crítica da razão prática, obra que é posterior à Fundamentação da metafísica dos Costumes, onde Kant desenvolve os conceitos de autonomia e heteronomia, o Filósofo alemão elabora a segmentação da atividade moral do indivíduo sujeita ao mundo sensível (empírico) daquela deduzida da racionalidade em seu sentido mais puro. Esta segmentação possui consonância com os conceitos de autonomia e heteronomia, como se verá a seguir.

O Filósofo alemão nesta Obra – Crítica da razão prática – procura demonstrar que a lei moral decorre da ideia de liberdade, sendo a razão moral, portanto, prática. A liberdade, assim descrita, no sentido racional, determinaria por si mesma a vida moral. O incondicionado e o absoluto seriam alcançados de forma plena na esfera da moralidade e a liberdade seria, dessa forma, o noumenon pretendido pela razão, isto é, a realidade tal como existe em si mesma, de forma independente da perspectiva necessariamente parcial em que se dá todo o conhecimento humano; a coisa-em-si.

Joan Solé, em Kant, a revolução copernicana na Filosofia (2015), afirma que na filosofia [moral] prática kantiana, a liberdade seria a capacidade plena de o sujeito reger-se pela razão. É o indivíduo – ser racional – seguindo as leis que ele próprio impôs a si mesmo como agente racional, colocando assim uma espécie de barreira aos estímulos do mundo empírico (sensível) – gosto, preferência, ambição etc. Apenas o dever moral, exercido no espaço de liberdade da razão, orienta o agir.

O ser, como sujeito de liberdade é concebido, em Kant, como númeno. Paradoxalmente, e ao mesmo tempo, deve ser compreendido como fenômeno inserido que está no contexto da causalidade do mundo natural (mundo sensível, empírico).

Se, por um lado, o mundo das coisas-em-si (o mundo numênico) não está acessível ao entendimento da razão pura (Crítica da razão pura. Teoria do conhecimento de Kant), de outro lado, o universo numênico está ao alcance da razão prática, que atua em seu modo não conceitual, não teórico, na esfera da realidade transcendental por exercício da própria liberdade, do agir racional da moralidade.  

Importante aqui trazer também o conceito de felicidade que, para Kant, seria um objeto material do querer, advindo do mundo empírico, sensível, e que seria também dependente da natureza de cada indivíduo particular, não gerando assim qualquer lei moral prática e universal. Em contraponto, a liberdade determinaria por si mesma o agir moral, alcançando o incondicionado e o absoluto, o universal, independente do indivíduo particular.    

A autonomia, portanto, na construção da teoria moral do Filósofo alemão seria o espaço decorrente da liberdade, o universo numênico da concretização do agir racional (da razão prática). Já a heteronomia, o espaço de uma orientação ética que provêm de fora da consciência, da razão do indivíduo, heteronomia esta que advém e existe no mundo externo, no mundo sensível, impactando o ser empiricamente, podendo inclusive conflitar a ação moral que está baseado no desejo, na busca da felicidade, sem o filtro do agir racional baseado na autonomia da razão.

Heteronomia, então, é aquela esfera que compreende os princípios de moralidade sob os quais a vontade do indivíduo (autonomia) deve submeter-se, obedecer (ou avaliar?) ao regramento social (sociedade, normas sociais, leis, regramento jurídico, cultura). As normas de conduta existem, portanto, independente e externamente ao indivíduo (fora do indivíduo).

CONCLUSÃO

Expostos estes conceitos, importante trazer o que sustenta Gilberto Cotrim, em sua obra Fundamentos da Filosofia (1999), ao afirmar que a consciência é o elemento que distingue o ser humano do restante da natureza e que é ela o componente que permite o desenvolvimento do saber e da racionalidade. A partir dela (consciência lógica), e da racionalidade que proporciona, é possível ao ser humano distinguir entre falso e verdadeiro. Junto dela, o ser humano é dotado também de uma consciência moral, que seria a faculdade de olhar para a si e para a própria conduta e formular juízos sobre os nossos atos. Ao formular juízos, o homem (ser humano) adquire as condições de escolha entre o correto e o incorreto, do ponto de vista moral.

Como pressuposto deste processo de escolha moral (certo ou errado, adequado ou inadequado), está a condição de liberdade. Quando não há escolha proporcionada pela liberdade, não há decisão moral. Decidir, portanto, entre certo ou errado sem a instância da liberdade não é uma escolha moral, mas uma coação imposta pelo meio, pelo contexto.

A responsabilidade moral na escolha (certo ou errado, mal ou bem) se dá, portanto, no âmbito da liberdade, onde a decisão (opção) é posta pela consciência moral do indivíduo. Esse é o espaço, então, da autonomia.

Contudo, como já se viu acima, a partir de Kant, junto do espaço da autonomia, existe também, paralelamente, de forma complementar, o espaço da heteronomia, onde o sujeito racional está submetido, e se defronta com um regramento que lhe é externo (exterior). Não se pode negar, desprezar este espaço e, portanto, não se pode desconsiderar a sujeição (exposição) a ele do indivíduo no seu agir moral.

Ora, o caráter, residente na esfera interior do indivíduo (consciência, razão), irá orientar as escolhas morais com as quais se defrontará, mas inevitavelmente este sujeito moral estará exposto a regras e leis que lhe são externas e que são também, invariavelmente, anteriores a ele (já existiam, agiam, mesmo antes do seu próprio existir [do indivíduo]. F. Hegel, por exemplo, entendia que a primeira formação do indivíduo moral advém da família, do seu contexto familiar).

Negar ou sonegar esta esfera externa de influência ao indivíduo, ao sujeito moral, é praticamente isolá-lo em algum tipo de experimento científico ou construção meramente teórica. Em M. Heidegger já se viu que a essência do humano esteja, muito possivelmente, no seu existir, isto é, no seu confrontamento com o horizonte hermenêutico do mundo.

As decisões e as escolhas morais, portanto, sujeitam-se a um conjunto de regras e normas que foram concebidas por uma determinada sociedade para que ela funcionasse com o mínimo de harmonia possível (sem entrar aqui no mérito se elas são as melhores ou mais adequadas, mas sim que foram estruturadas pelo conjunto institucional – cultura, leis, visão de educação, regras sociais, regramento de convívio coletivo etc. – daquela determinada sociedade).

Dessa forma, argumenta-se aqui que: o sujeito moral possui em sua consciência (consciência moral), e em seu caráter, uma instância de decisão ou de escolhas morais, mas a decisão ou escolha final se dará, plenamente, no confronto com o conjunto de regras a que estará submetido. Daí decorrerá sua decisão moral (certo ou errado, adequado ou inadequado) última.

Neste espaço de heteronomia, onde estarão elementos como dependência, obediência, submissão, rebeldia etc., poderá o indivíduo, internamente, em sua consciência, concordar ou discordar do conjunto (ou de elementos parciais, específicos) de regras existentes e anteriores a ele. Poderá até mesmo valer-se do caminho institucional buscando alterá-las. Mas inevitavelmente estará sujeito a elas (regras externas). 

Também não se pode desprezar que o ser racional, no seu agir, enfrentará, outrossim, pressões decorrentes das relações de poder, ideologia, alterações brutais no sistema político, rupturas institucionais etc.

Dessa forma, uma alternativa de resposta ao problema posto no início deste ensaio é a que se segue:

  • O caráter, a consciência moral, a razão nos suscitam e proporcionam uma capacidade de escolha, escolha moral entre certo ou errado, adequado ou inadequado, bem ou mal. Contudo, é a confrontação dessa escolha com o mundo externo e o contexto no qual estamos inseridos que irá, de fato, determinar a qualidade de nossa decisão final.

A partir disso, nos perguntaríamos:

  • O caráter poderá nos auxiliar sim em uma importante decisão intermediária, qual seja: confrontarei a conjuntura heterônoma a que estou submetido se minha escolho for distante (divergente) dos normativos vigentes? Ou, de outro lado, me submeterei a ela, mas divergindo fortemente? Confrontarei o conjunto normativo sempre que dele divergir ou ocasionalmente? Ou ainda: serei fiel sempre às escolhas que me proporcionam o primado da razão prática moral (autonomia), divergindo com frequência do contexto (heteronomia)?

Bem, neste caso, talvez uma outra reflexão possa ser colocada à frente dessas: será que estou no contexto sociocultural e normativo que me apraz, onde angario felicidade? Não deveria, então, buscar convívio em outro sistema (outra heteronomia) em que minhas escolhas morais, decisões individuais, estivessem em maior harmonia com o contexto?

Nesse sentido, o filósofo contemporâneo Ernst Tugendhat, em suas conferências apresentadas no Brasil no ano de 2001, e publicadas posteriormente em formato de livro (Não somos de arame rígido), afirma que:

“O conceito de moral, de onde parto, contém, pois, uma série de aspectos mutuamente conectados. Uma moral é, neste sentido, um sistema de exigências recíprocas que se expressam em sentenças de dever; esse dever – a ‘obrigação’ – está calcado nos sentimentos de indignação e culpa e a cada sistema moral pertence um conceito de possa moralmente boa. Um semelhante sistema normativo, já que limita o espaço de liberdade dos indivíduos, precisa ser considerado como justificado para cada um desses indivíduos, tanto quanto para os outros membros da comunidade. Os indivíduos integram-se ao sistema somente porque o consideram justificado.” (2002, p. 27).

A posição de Tugendhat, que vai no sentido que este ensaio pretende defender, não parece também se opor frontalmente a um dos argumentos expostos pelo Prof. Denis Coitinho, em seu texto A importância das virtudes e seus limites, de 2020 (Material didático da Disciplina), quando afirma:

“(…) a integridade é uma virtude social que capacita o indivíduo a melhor compreender os valores que são intersubjetivamente [grifo acrescentado] compartilhados. Importante reconhecer que essa virtude se mostra central não apenas para a felicidade individual, garantindo a estabilidade psicológica, mas também parece essencial nas esferas da política, direito e economia para a conquista da estabilidade social.”   

Já Furrow (Qualidades do caráter moral, p. 148), coloca o seguinte problema: “A virtude da honestidade pode demandar que eu diga uma verdade difícil a alguém, enquanto a virtude da amabilidade poderia sugerir que eu dissesse uma mentira, assim evitando causar uma dor.”  Na sequência, o Autor se pergunta: “Em vista de tais conflitos, como podemos atingir a atitude de agir com toda a sinceridade e coerência que constituem a integridade?”.

Furrow sustenta que uma pessoa plenamente integrada a um determinado contexto (heteronomia), em que seus desejos de primeira ordem são totalmente regulados por desejos de segunda ordem que ela endossa e age em consonância, poderá ficar impedida de experimentar valores e desejos novos, que não se enquadrem no sistema de valores vivenciado. O Autor admite que na sociedade contemporânea o indivíduo dificilmente irá escapar de enfrentar tais conflitos e pressões, contudo entende ser possível experenciar conflitos de valores sem perder a capacidade de agir.

Todavia, diz o Autor, para que tenhamos integridade, algumas perdas são necessárias. Mas essencial é, para manter-se a integridade, o exercício da virtude da coragem, sem o que o valor das coisas com as quais nos preocupamos e importamos se tornarão frágeis e vulneráveis.   

Para concluir, então, pode-se sustentar que a liberdade de agir consoante ao reinado da autonomia não deve excluir, negar, rechaçar, a influência do ambiente externo e seu regramento, mas sim nos colocar em face de nossa capacidade de refletir (e agir) sobre as limitações surgidas e encontradas (confronto com o horizonte hermenêutico do mundo), dando-nos a direção a seguir, inclusive a partir de nossas escolhas e juízos morais.

Talvez para mais além do que as duas abordagens éticas aqui debatidas – ética do dever/deontológica e ética do cuidado –, uma resposta mais em consonância a esta visão possa ser aquela desenvolvida pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, e sua teoria discursiva da ética, ou Ética do discurso (Consciência moral e agir comunicativo, 1989), em que o próprio Autor diz que, juntamente com K.-O. Apel, empreendeu uma tentativa de reformular a teoria da moral kantiana, considerando a fundamentação de normas através da teoria da comunicação (Comentários à ética do discurso, 1991).

Contudo, não é o escopo deste breve ensaio explorar mais detalhadamente a teoria ética habermasiana.

Basta dizer apenas que nos parece ser uma evolução à abordagem kantiana ao considerar o contexto discursivo e a livre participação dos interlocutores como central para a escolha consensual da melhor alternativa moral. Para Habermas, aqui, o processo de livre busca do consenso entre os participantes é mesmo mais importante do que o próprio consenso em si. Mas isso será, brevemente, tema de outro ensaio.

Marcelo L. Fraga

Mestre em Filosofia – PPGF/PUCRS

26 de setembro de 2022

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