A Metafísica

A Metafísica

Acredita-se que o termo metafísica tenha sido utilizado pela primeira vez por Andrônico de Rodes, responsável pela escola peripatética (Escola de seguidores de Aristóteles) no século I a.C.

Na adaptação ou organização do conjunto das obras de Aristóteles – o Corpus aristotelicum –, Andrônico de Rodes situou os escritos sobre a filosofia primeira, isto é, sobre os primeiros princípios e as primeiras causas de toda a realidade, após os tratados sobre Física ou acerca do mundo físico. Assim esta filosofia primeira recebeu a denominação de met(ta)-physica, ou seja, “além da física” ou “aquilo que vêm após o tratado sobre física”.

Os temas tratados na metafísica de Aristóteles referiam-se basicamente a aspectos como substância, causalidade, natureza do ser e existência de Deus, determinando a especulação em torno do estudo do ser enquanto ser, dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser e da natureza da realidade última das coisas.

Todavia, o pensamento metafísico pode ser considerado anterior à fundação, por Aristóteles, do ramo da Filosofia denominado “além da Física” (met(ta)-physica). O pensamento metafísico se caracteriza, conforme o pensador alemão Jürgen Habermas, por um idealismo filosófico, que tem seu principal representante em Platão, mestre e predecessor de Aristóteles.

Este idealismo filosófico persegue uma espécie de fonte inabalável de conhecimento das coisas, um tipo de porto seguro, onde estejam ancoradas toda a Verdade e a Realidade sobre o mundo ou sobre o universo. Um lugar onde estejam armazenadas as certezas mais absolutas e as substâncias primeiras de todas as coisas.

Do ponto de vista filosófico, talvez esta forma de pensamento idealista tenha sido construída originalmente por Parmênides e pela escola eleática. Ao afirmar, em seu poema Sobre a natureza, “o que é, é – e não pode deixar de ser”, Parmênides estabelece explicitamente um princípio lógico-ontológico sobre a unidade, mas também inicia um debate especulativo sobre o conhecer e sobre o ser, transformando a problemática do conhecimento da realidade uma questão subjacente à mente humana, isto é, a realidade (ou o verdadeiro ser), está subordinada à razão.

Entretanto, no sentido de um pensamento idealista que busque as mais inatacáveis certezas, a visão metafísica extrapola o campo da filosofia e parece estar instalada desde sempre na programação mental do ser humano. Isto transparece em construções culturais como a mitologia e a religião. O que são mitologia e religião (em muito anteriores à forma de pensamento sistematizado conhecida como Filosofia), senão uma busca de um porto seguro, a procura de um lugar onde o homem finalmente irá encontrar todas as respostas para sua origem, sua existência, o sentido de sua vida e o conforto do eterno descanso ou da eterna recompensa.

Ora, a Filosofia tem sua origem no mito. Foi a partir da insatisfação com as explicações mitológicas do mundo e das coisas que os primeiros filósofos gregos, por volta do século VI a.C, procurarão sistematizar um pensamento e um vocabulário, de alguma forma mais “racionalizado”. Os filósofos originais buscavam, portanto, uma explicação para a realidade que fosse diferente daquela oferecida pela mitologia. Para os primeiros pensadores gregos, a explicação da realidade dada pelo mito representava apenas a aparência desta realidade, uma espécie de ilusão sobre a realidade.

Na Grécia antiga, duas escolas caracterizaram bem esta tentativa “racionalizada” de explicação da realidade: a escola Jônica e a escola Eleática.

Da Jônia, através de pensadores como Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito e Anaxágoras, surgiu a resposta de que a realidade é formada pela phýsis (natureza). Os filósofos da escola Jônica preocuparam-se estabelecer os elementos formadores, a essência, da natureza e, em última instância, formadores da realidade, fundando a explicação cosmológica do real. De outro lado, para a escola Eleática a fundamentação mais adequada da realidade estava no próprio ser. A essência do real é o ser. É pela via do ser que a realidade é revelada. Através das construções do homem, do nomos (regra, convenção, lei), é que transparece o real. Assim, a explicação da realidade que vem de Eléia, que vem de Parmênides e de Zenão, pode ser considerada uma ontologia.

Deste modo, com estas duas escolas originais do pensamento filosófico, e originais enquanto fundadoras da filosofia, funda-se também a metafísica. A metafísica está, portanto, imbricada com a Filosofia em seu nascedouro. A tentativa de substituição do mito como formador de uma visão de mundo segura e estável pela explicação do pensamento “racionalizado” e sistemático, através da filosofia, mostra-se ainda, ou também, uma busca de um porto seguro, a procura por certezas, enfim, a perseguição da Verdade e da Realidade.

A primeira cosmologia, assim como a primeira ontologia, constituíram-se na procura do princípio primeiro, da essência primeira e absoluta, da causa primeira, do primeiro motor, na busca, em outras palavras, de um porto seguro, um lugar firme para se pisar. Na metafísica, neste sentido irmã gêmea da filosofia, a tarefa iniciada foi, pois, de buscar transformar o múltiplo em uno, a aparência em realidade, a ilusão em verdade, a dúvida em certeza absoluta.

Como mostra Jürgen Habermas, em seu livro Pensamento Pós-metafísico, a metafísica, em sua origem, não é mais do que uma tentativa de racionalização das cosmovisões fornecidas pela religião e pela mitologia. Diz o Filósofo alemão: “O feitiço das forças míticas e a magia dos demônios, que deveria ser rompido através da abstração do ser geral eterno e necessário, continua presente no triunfo do uno sobre o múltiplo. O medo frente aos perigos incontroláveis, que transparecia nos mitos e nas práticas mágicas, vem aninhar-se agora nos conceitos controladores da metafísica”.

Para Habermas, Platão é o principal representante deste idealismo metafísico. Na perspectiva do idealismo metafísico de Platão, existe uma realidade transcendental perene, imutável, a-histórica e atemporal, que está além da realidade empírica. Esta realidade transcendental pode ser alcançada através da especulação filosófica e da reflexão. Platão descreve esta realidade como o mundo das idéias. Tome-se o exemplo de um ente qualquer, um cavalo. Na visão platônica, existe um ente empírico denominado cavalo que é apenas a forma imperfeita, a aparência, da idéia, esta sim perfeita e imutável, de cavalo.

Assim, existiria um mundo ideal, o mundo das idéias e formas perfeitas, acessível para aqueles que conseguiram superar, através da intuição intelectual, da reflexão (nóesis, noûs), a opinião (dóxa) sobre a aparência (eíkones) das coisas e atingiram o conhecimento verdadeiro (epistéme) sobre as formas ou idéias (eîdos). Esta é a base da Teoria do Conhecimento de Platão, cuja exposição mais clara é feita no livro VI de A República. Neste livro, através do diálogo entre Sócrates, Glauco e Adimanto, Platão faz mais uma vez uso de seu método dialético de argumentação para mostrar como se dá o processo de transição, ou superação, da mera percepção sobre o mundo sensível para o real conhecimento do mundo inteligível.

A expressão máxima desta formulação de Platão está no famoso Mito da Caverna, descrito no livro II de A República. Na imagem construída por Platão, o pensador, o homem esclarecido, o filósofo, é capaz de transcender ao mundo das simples aparências e mergulhar no universo da verdadeira realidade. Ao sair da caverna, ao esclarecer-se, o pensador adquire um status superior, uma condição privilegiada em relação à massa que ignora e vive em meios às ilusões e aparências. Ao deixar a caverna e arrebatar a verdade, o pensador atinge um hemisfério seguro e estável, uma camada indiferente e independente às mudanças e condições históricas – um porto seguro, enfim. Deixando assim, para trás e para os outros – para os que não saíram da caverna – o outro hemisfério, aquele das aparências, das ilusões, da transitoriedade e historicidade.

Embora já estivesse, como foi dito anteriormente, contida no nascedouro da Filosofia, no âmbito das escolas Jônica e Eleata, a metafísica como fuga da temporalidade atinge seu ponto máximo em Platão e em sua teoria do conhecimento. O mundo das idéias de Platão torna-se a expressão máxima da metafísica e o pensamento platônico configura-se como paradigmático na busca pelos conceitos controladores da metafísica.

É interessante notar o contexto em que Platão desenvolve sua obra filosófica e sua teoria do mundo das idéias em oposição ao mundo das aparências. Extremamente preocupado com as mudanças socioculturais do mundo grego em que vive, Platão atribui boa parte destas alterações a uma espécie de esvaziamento da filosofia que ele, em continuidade à perspectiva de Sócrates, atribuía aos sofistas. Para Platão, os sofistas, através de seus ensinamentos, transformavam os conceitos controladores da filosofia em uma mera retórica relativista. A dinamicidade da palavra e do argumento substituía a imutabilidade e a força do conceito e da essência das coisas. Platão via isto como uma clara ameaça ao mundo grego e culpava esta visão pela decadência helênica. Os sofistas pareciam querer, aos olhos de Platão, desfigurar o mundo perfeito das idéias e jogar novamente a cultura grega no mundo das aparências e ilusões, um regresso ao período mítico.

Platão, através de seu projeto filosófico, marca assim, definitivamente, a metafísica como fundamento essencial ao pensamento do ocidente. A metafísica agora travestida de pensamento racionalizado pode transcender à esfera “ingênua” do mito e da religião e incorporar-se às instâncias “nobres” da cultura ocidental: filosofia, arte e ciência.

A união entre Filosofia a e metafísica atravessa, inabalável, toda a antiguidade clássica, perpassa com força redobrada o medievo, atingindo, em seguida, a idade moderna. Desnecessário é aprofundar a discussão sobre o fortalecimento dos conceitos controladores da metafísica no pensamento medieval. Quase totalmente subordinada à teologia, a filosofia do medievo somente sobrevive ao crivo da Igreja se estiver amparada pela metafísica. Diferentemente do período clássico, as certezas metafísicas agora são postas do ponto de vista de um ser superior, uma inteligência suprema e absoluta que tudo controla e dirige. Esta instância superior, primeira e última, precisa ser justificada racionalmente. Não basta a fé. A Filosofia recebe então a incumbência de fundamentar a existência, onipresença e onipotência de Deus. Tomás de Aquino e suas cinco vias racionais de prova da existência de Deus são talvez o exemplo maior desta metafísica renovada e fortalecida. Deus, em sua versão racionalizada e não apenas como sujeito da fé, é sem dúvida o substrato máximo da metafísica.

Na Filosofia moderna, no entanto, surge um novo desafio à metafísica: a tentativa de fundamentação da consciência de si, ou a subjetividade.

Para os antigos a tentativa de explicar o mundo racionalmente estava estruturada em torna do questionamento “o que é a realidade?”. Esta pergunta buscava acima de tudo estabelecer uma distinção entre aparência e essência, isto é, orientava a procura pelo mundo verdadeiramente real ou a busca pela verdadeira explicação do mundo. Já foram discutidas acima quais as respostas encaminhadas para estas questões, por exemplo, pelos gregos das escolas Jônica (phýsis -> física -> ciência -> cosmologia) e Eleata (nomos -> convenção -> ser -> ontologia).

Já os pensadores modernos, embora ainda pretendendo encontrar uma explicação real para o mundo e para as coisas, orientaram-se por outra pergunta: “como é possível o conhecimento do real?”.

Se para os pensadores da antiguidade o existente estava apresentado, ou se mostrava para o si mesmo (o sujeito), os pensadores modernos viam o existente como representado. Neste caminho, a Filosofia moderna trouxe para o centro do debate a idéia de subjetivação do mundo, ou seja, o sujeito enquanto agente de conhecimento passa a atrair todas as atenções. O foco principal do debate passa a ser então a teoria do conhecimento ou epistemologia. Verdade e realidade passam assim a ser objetos do conhecimento humano e, enquanto elementos constituídos pela mente, fazem agora parte de uma forma de perceber o mundo através da subjetividade desse ser humano.

Esta subjetivação do mundo, esta instituição do humano como palco do acontecer ou do existente – como dirá Heidegger mais adiante – leva, por conseguinte, a uma outra problemática a ser solvida pela metafísica e pela Filosofia: se a realidade agora subjaz ao homem, se o mundo é subjectum da mente, como conquistou o ser humano esta condição de sujeito do conhecimento, como ou quem concedeu esta habilidade ao homem? Como o ser humano enfim conquistou sua consciência de si e do mundo? De onde vem sua autoconsciência e sua subjetividade?

São questões para as quais destacados filósofos modernos irão dedicar seus mais abrangentes esforços para esclarecer. Descartes, Hume, Locke, Rousseau e Kant ocuparão seu tempo em oferecer uma resposta segura a tais questões. Mas isso já é assunto para um outro Ensaio…

 

Marcelo Lorence Fraga
Mestre em Filosofia

 

Bibliografia Básica

ARISTÓTELES. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BLACKBURN, Simon. A Metafísica. Disponível na Internet em http://www.filosofia.pro.br/textos/ametafisica.htm.

Corbisier, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo I: Problemática da Introdução à Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

__________. Pensamento Pós-metafísico. Estudos Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

HEIDEGGER, Martin. ¿Qué significa pensar?. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Nova: s/d.

RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental: a aventura dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

_____________. Diferença e metafísica: ensaios sobre desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

Platão

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Aristóteles

Aristóteles

Jürgen Habermas

Jürgen Habermas

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