Os Filósofos e Suas Idiossincrasias

OS FILÓSOFOS E SUAS IDIOSSINCRASIAS

 O temperamento peculiar de Immanuel Kant

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Os grandes Filósofos são verdadeiros gênios da humanidade. Em geral, achamos e temos a convicção de que Auguste Rodin é um gênio, que Beethoven é um gênio. Que James Joyce, Pablo Picasso, Albert Einstein, Neruda, Yeats, Victor Hugo são gênios. Gênios da humanidade viriam da Escultura, da Música, da Pintura, das Ciências, da Literatura etc. Por vezes, esquecemos que as maiores personalidades da Filosofia também o são geniais.  Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Quine, entre tantos outros, são gênios sim. Geniais pensadores da humanidade. Geniais pensadores e extraordinários autores. Sabiam muito bem expressar aquilo que estavam pensando, refletindo, analisando e, ao mesmo tempo, colocar seus leitores a par disso. Existe grandeza em expressar um pensar complexo.

Como gênios que são, no entanto, a exemplo de outras personalidades geniais, possuem suas próprias idiossincrasias. Seus maneirismos, trejeitos, “temperamento peculiar” como referi no subtítulo do Ensaio. Ou, “manias” mesmo. Gênios costumam ser geniosos…

Gosto muito de pesquisar sobre isto. Gosto muito de analisar a personalidade e as peculiaridades desses grandes nomes da Filosofia. Acho, além de divertido (no bom sentido!), muito interessante. Isso porque, ao nos depararmos com os maneirismos, trejeitos, histórias pitorescas enfim, dos grandes Pensadores, também nos é revelada, nada mais nada menos, do que sua humanidade…

O Filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) é um bom exemplo disso.

Kant nasceu em Königsberg (ou “montanha do rei”), que então fazia parte da Prússia germânica, e era uma cosmopolita cidade portuária do Mar Báltico. Veio de uma modesta família de artesãos, de formação Luterana e Pietista. Seu pai, Johann Georg Kant, era seleiro. Homem austero, condenava a mentira. Sua mãe, Anna Regina Reuter, era profundamente religiosa e passou aos filhos uma educação moral sólida. Immanuel Kant era o quarto mais velho de onze irmãos. Estudou filosofia, matemática e física.

Aos 45 anos, Kant foi nomeado professor titular de Lógica e Matemática na Universidade local. Lecionou ali por 27 anos. Em 1792, então com 68 anos, foi advertido e suspenso pelo rei Friedrich Wilhelm II, em razão de suas visões serem consideradas pelo monarca e outras autoridades da época, “heterodoxas”. Kant via com grande esperança o movimento libertário da Revolução Francesa. Achava que poderia representar o início da emancipação da razão humana. Curiosamente, o rei Friedrich Wilhelm II não concordava muito com isto…  Após o passamento do monarca, retornou à atividade docente. Diz-se ter sido um excelente professor, com aulas sempre lotadas de estudantes. Johann Georg Hamann (1730—1788), amigo e contemporâneo de Kant, mencionou certa vez que em geral era necessário estar com uma hora de antecedência no local de suas aulas, pois somente assim se conseguia um lugar.

Imannuel Kant jamais deixou as proximidades da cidade de Königsberg (seu passeio mais longo teria sido uma viagem de cerca de 150 km de sua casa e até uma cidade vizinha). Isto não o impediu de ser um cidadão do mundo e de acompanhar de muito perto os eventos mais significativos de seu tempo, como o movimento da Independência norte-americana (1776) e a própria Revolução francesa (1789). Escreveu obras centrais para o pensamento ocidental, como as suas três Críticas: a Crítica da Razão Pura (1781), a Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica da Capacidade de Julgar, ou Crítica do Juízo (1790). Tinha uma vida social razoável e fazia belas palestras. Kant nunca se casou. Dizia não ser digno retirar uma donzela da proteção, conforto e segurança da casa paterna para sustentá-la apenas com seu salário de professor.

O Filósofo alemão era metódico e sistemático.

Acordava todos os dias pisando sempre, ao mesmo tempo, com os dois pés no chão, do lado de fora da cama. Às cinco da manhã, invariavelmente já estava sentado à mesa para o desjejum. Após saborear o café da manhã, ia-se para seu escritório com o objetivo de planejar suas aulas. Sempre com o auxílio de um pouco de fumo.

Kant, como já dito acima, tinha uma vida social razoável e evitava almoçar sozinho. Convidava, então, uns poucos amigos para o almoço, de modo a formar um grupo de no mínimo três e no máximo nove convivas. Tomava uma espécie de vinho da Hungria ou do Reno, a que ele chamava de “tônico”. Servia sua taça, mas não a sorvia até que todos os convidados estivessem posicionados e confortáveis.

Além do cuidado com os temas para conversas e da variedade de comidas, o Filósofo buscava convidar pessoas que formassem um grupo heterogêneo para garantir uma variedade suficiente na conversa, tais como representantes de todos os tipos profissionais. Era um excelente anfitrião, e não deixava de cumprir normas do bom trato social. Adquiriu certo renome como um mestre na composição de almoços. Kant passara dificuldades financeiras alguns anos antes e precisou deixar os estudos, a partir do passamento de seu pai. Para se sustentar, durante quase dez anos, torna-se professor particular (preceptor) em residências de famílias abastadas da Prússia Oriental. O Filósofo aprendeu rapidamente os modos da elite de sua época, como manter conversas agradáveis e as formalidades de uma nobreza que até então lhe era estranha.

Imannuel Kant era fascinado por cronômetros e medição de tempo.

Encerrado o almoço, retirava-se, sozinho, para realizar seu famoso passeio de três da tarde. A caminhada em questão era cumprida em um horário de tamanha precisão que, diz-se que os moradores da sua vizinhança ajustavam seus relógios enquanto Kant passava. Imannuel Kant teria atrasado somente em uma vez seu passeio vespertino: no dia em que, ansioso por notícias dos andamentos do processo revolucionário em avanço na França, foi ele mesmo ao correio procurando por notícias e correspondências. Outras versões dão conta de que teria, excepcionalmente, se atrasado naquele dia entretido que ficara com a leitura da última publicação do filósofo David Hume. Difícil saber… Mas logo se percebe que atrasos em seus passeios eram pouquíssimo comuns…  Além disso, para ele, tais caminhadas eram uma forma de preservar-se da rouquidão, de tosses e de indisposições pulmonares. Evitava insistentemente em conversar com alguém ao longo do passeio. O Filósofo alemão possuía corpo pequeno e frágil. Mas assegura-se que sua disciplina e rigor com os exercícios lhe permitiram viver com razoável saúde até avançada idade para sua época.

Quando voltava de seu rotineiro exercício físico, Kant ia para a biblioteca e lia até o anoitecer. Por algum tempo antes de deitar, parava de ler e de pensar. Achava que refletir sobre os temas estudados até o último momento antes de ir para a cama lhe causaria insônia. Ao deitar, possuía também uma rigorosa rotina, envolvendo a arrumação e a vestimenta do pijama, o lado de dormir, a forma de cobrir-se com as cobertas etc.

Duas histórias (talvez lendas) acerca de Kant são muito interessantes.

Uma delas dá conta de que, após anos e anos de meditação em seu escritório, contemplando o horizonte como forma de expandir a mente e o pensamento, deu-se conta, certo dia, que a copa de uma árvore no pátio de seu vizinho começara a lhe interromper a visão. Incomodado, teria solicitado, e depois exigido, que seu vizinho podasse a árvore, pois ela lhe impedia de encarar o horizonte. Depois de insistentes pedidos, o vizinho consentiria e cortaria parte dos galhos e da copa da árvore que tanto atrapalhavam o vislumbrar de Kant em direção ao infinito.

Na outra, o Filósofo alemão já em idade avançada e com freqüentes enxaquecas, começava cada vez mais a ficar incomodado com o cantar de um galo de propriedade de outro de seu vizinho. Irritava-lhe a inconstância e recorrência com que tal galo saudava a chegada do amanhecer (Kant era fascinado por cronometria, como já disse, e a ave em questão teimava em não respeitar horários…). O Filósofo alemão recorreu por várias vezes a este seu vizinho pedindo-lhe que desse algum jeito no galo, que lhe atrapalhava o sono e as reflexões. Não obteve sucesso. Atônito e meio que desesperado, tomou então uma decisão: fez ao vizinho uma oferta irrecusável pela compra do galo! O vizinho, apesar do apreço pela ave, considerou a quantia elevada para um simples galo e, após alguma relutância, o teria finalmente vendido a Kant. Ainda hoje, especula-se no meio acadêmico, e fora dele, o destino dado pelo metódico Pensador alemão ao alarmado galo…

Imannuel Kant viveu por 80 anos e acreditava que sua saúde era a melhor que um ser humano poderia ter naquela faixa de idade. Sua rotina, estritamente vinculada a hábitos e regras de vida, o permitia viver com a segurança estabelecida por uma rigidez de costumes e procedimentos. Rotina tão dura quanto suas duras leis morais. Levou sua vida de forma organizada e disciplinada, a exemplo do que seu próprio imperativo categórico sugeria: “Aja como se suas ações pudessem servir de espelho, por toda eternidade, para todos os homens.”.

Marcelo Lorence Fraga
Mestre em Filosofia

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

MILLER, James.  Vidas Investigadas: de Sócrates a Nietzsche. Ed. Rocco Digital. Versão digital.

PASCAL. Georges. Compreender Kant. 2. ed.  Petrópolis: Vozes, 2005.