Deve ser Radical a Filosofia?

diógenes

Deve ser Radical a Filosofia?

Ou

A Filosofia e seus Pressupostos


A insatisfação com as certezas dogmáticas trazidas pelas explicações míticas do mundo fez nascer, com os gregos antigos, um novo vocabulário. Ao conjunto de expressões e conceitos recém-construídos por esse novo vocabulário convencionou-se chamar: Filosofia.

Este novo vocabulário começa a ser desenvolvido em colônias gregas, como a Jônia e a Magna Grécia (Península Itálica e Sicília), por volta do século VI a.C., e tem por intenção original uma busca pela racionalidade que regula e estrutura o universo e as coisas nele contidas.

Com isto, os primeiros pensadores gregos envolvidos nesta tarefa, posteriormente conhecidos como filósofos pré-socráticos, iniciam um processo de dessacralização da natureza. Nesse processo, talvez mesmo sem se aperceberem, ofereceram as bases para o próprio pensar filosófico.  Isto é, além de esboçarem um novo vocabulário, um novo arcabouço conceitual, ajudaram a desenvolver um novo pensar.

A filosofia, portanto, é um outro pensar. Um outro pensar no sentido de uma outra forma de enxergar e explicar o mundo. Um pensar que busca ultrapassar o dogmatismo mítico e o sagrado.

Para que possa existir, entretanto, esta forma dessacralizada e não dogmática de pensar, alguns pressupostos precisam existir, algumas condições necessitam ser atendidas. É o que será analisado neste breve Ensaio.

Desde sua origem e até hoje, a filosofia estrutura-se em torno de um tipo de pensamento abstrato e sistematizado, marcado pela racionalidade, pela construção firme de conceitos e por uma rigorosa lógica interna de seus próprios argumentos.

Como a base, o ponto de partida, para essa estrutura de pensamento, para essa forma de pensar, ou dito de outra maneira, para que se possa mesmo chegar a esta forma de pensar, a filosofia precisa atender a alguns requisitos fundamentais. São quatro estes requisitos: rigorosidade, criticidade, totalidade e radicalidade.

Estas quatro características ou requisitos formam a condição de possibilidade da filosofia. Vejamos então um pouco mais detalhadamente cada uma destas características.


Rigorosidade

 A análise filosófica deve ser, antes de mais nada, rigorosa. Rigorosa no sentido de um aprofundamento do método específico e determinado da pesquisa filosófica. Uma pesquisa que exige a revisão de todos os conceitos e paradigmas anteriores acerca do tema ou assunto abordado. Pesquisa que deve ser seguida de uma análise que não se contente e nem se contenha naquilo já dito ou escrito. Análise esta que não se permita deter ao esbarrar em dogmas, tradições e certezas do passado. Ao expor suas conclusões, o discurso filosófico deve estar centrado em conceitos que estejam dotados de uma estrutura interna coerente, concatenada e lógica. As conclusões obtidas da pesquisa e análise empreendidas devem ser claras, por mais complexo e abstrato que seja o tema estudado. Rigorosidade.


Criticidade

 A criticidade em filosofia nada mais é do que a busca de ultrapassagem do pensamento ingênuo. Ultrapassagem do pensamento que se contenta com as explicações já dadas e tidas como certas. Ultrapassagem de um pensamento que se acomode com o status quo existente.  Ultrapassagem de um pensamento que não queira promover mudanças, que não objetive a transformação da realidade. Toda a filosofia que não tenha a pretensão de contribuir com a construção de uma sociedade melhor, mais justa, mais equilibrada, mais humana, através da reflexão crítica, não-ingênua, não merece o título de filosofia. A filosofia não é neutra. A filosofia precisa ser construída sempre em bases de juízo de valor. Talvez essa seja uma das principais distinções entre o pensar filosófico e o pensar próprio da Ciência. Criticidade.


Totalidade ou Visão de Conjunto

 A percepção filosófica, o olhar filosófico, deve sempre buscar enxergar o todo, o conjunto. Sua análise nunca pode ser parcial, fracionada, fragmentada. Se for, não poderá pretender ser filosofia. O contexto e suas variantes devem ser levados em consideração. Os desdobramentos e as consequências daquela determinada perspectiva filosófica devem ser ponderados e pensados.

Se as ciências são particulares, na medida em que se ocupam de forma mais centralizada em seu objeto específico de estudo, a filosofia é sempre de conjunto, isto é, relaciona e examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos da realidade e das coisas entre si. A filosofia deve pretender visar ao todo, à totalidade.

Evidentemente que a perspectiva e o referencial teórico adotados por cada filósofo irá influenciar sua abordagem e conclusões, atribuindo sempre um viés a sua análise. Afinal, o pensar filosófico se posiciona. Mas este determinado viés não deve deixar de levar em consideração ou negligenciar outros vieses, e mesmo o conjunto de vieses. Totalidade.


Radicalidade

Aqui deve ser oferecida, enfim, a resposta à indagação proposta no título deste Ensaio: deve ser radical a filosofia? E a resposta é sim. Sim, o pensar filosófico precisa ser radical.  Radical no sentido de uma reflexão que busque a raiz, a origem, os fundamentos, do problema ou da questão analisada. Um pensar que não vá às raízes de uma determinada questão, é um pensar ingênuo, fruto de uma consciência ingênua. Um pensar assim não é filosófico. O pensar filosófico precisa aprofundar sua reflexão até à fonte primeira daquela pretensão de verdade, desconstruindo e reconstruindo conceitos e fundamentos, mesmo que para manter ou defender sua validade. O pensar filosófico, o filosofar, precisar ser Radical.

Assim como a ciência, as artes, a espiritualidade, a filosofia é uma conquista da humanidade. Mas para que ela exista, a filosofia, para que ela pretenda ser filosofia, ela deve ser construída e pensada a partir destes pressupostos: rigorosidade, criticidade, totalidade e radicalidade. Do contrário, ela será um outro pensar, ou outro refletir, certamente também próprio do  humano. Mas não será Filosofia.

Marcelo Lorence Fraga
Mestre em Filosofia – PPGF/PUC-RS

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ARANHA, M. L. de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, 1989.

__________________. MARTINS, M. H. Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1995.

CORBISIER. Roland. Introdução à Filosofia. Tomo I: Problemática da Introdução à Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. 13. reimpressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

OLIVEIRA, Manfredo A. Sobre a fundamentação. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.