Heidegger e a superação da Metafísica
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), entre outros objetivos, tomou para si o desafio de superar a metafísica. Procurando seguir um caminho distinto daquele adotado pelo movimento analítico (filosofia analítica), que objetivou o mesmo através de uma análise praticamente lógico-matemática dos constructos metafísicos, Heidegger decide mergulhar nas origens da tradição do pensamento ocidental, acessando um momento em que ainda não houvesse metafísica, isto é, no pensamento grego pré-socrático – principalmente com Heráclito e Parmênides.
Heidegger praticou uma inovadora ruptura com a metafísica ocidental através de um processo que denominou destruição, mas destruição no sentido de desconstrução e não de eliminação. Trata-se pois de empreender uma análise desconstrutiva de dentro da própria metafísica, já que para Heidegger é impossível colocar-se fora dela. Nesse sentido o filósofo fala em superação e adentramento a metafísica, que significariam refazer a construção com que a metafísica trabalhava ao se auto-expor nos textos da história da filosofia.
A desconstrução da metafísica é empreendida por Heidegger através de uma linha mestra, que é adotar uma determinada postura diante do ser humano, isto é, a idéia de uma radical finitude e faticidade do homem. Com inspiração inicial em Kant, o filósofo da Floresta Negra procura, em seu projeto de superação da metafísica desde dentro, responder à questão “que é o homem?”. Esta questão será respondida por ele a partir de sua analítica existencial. Através da analítica existencial, Heidegger localizará o aspecto principal de toda a metafísica: a questão do esquecimento ou encobrimento do ser.
Para o filósofo alemão, a história da metafísica é exatamente a história do esquecimento do ser, isto é, o ser na metafísica é sempre tratado como ente. O ser é sempre objetificado e neste processo imediatamente identificado com qualquer outro ente da natureza. Esta é premissa principal de Heidegger em sua crítica ao esquecimento do ser pela metafísica: não entificar o ser.
Conforme Martin Heidegger, somente é possível não confundir o ser com algum ente, quando ele é pensado a partir da compreensão do ser. Então o espaço do acesso aos entes é aberto a partir do horizonte do ser. É para isso que o homem é Da-sein, sendo essa expressão (Dasein) o constructo para definir, primeiramente, a transcendentalidade e, depois, o acontecer da história do ser. Na relação entre ser e ente se estabelece, assim, na perspectiva de Heidegger a diferença ontológica. Não apenas uma diferença, mas uma diferença absoluta, ente e ser precisam ser pensados separadamente, distintamente.
A revelação, a compreensão do ser que distingue ser de ente, sustenta todas as nossas expressões lingüísticas e, portanto, todo nosso conhecimento, isto é, todo vir ao encontro dos entes.Como a metafísica, para Heidegger, não pensou essa diferença entre ser e ente, ela acabou por “entificar” o ser, isto é, equiparou equivocadamente ser e ente, determinando assim um obstáculo extraordinário para a filosofia em pensar as condições de conhecimento do ente e para pensar o ser.
É essa “confusão” da metafísica que leva Heidegger a colocar a diferença ontológica como ponto de partida para falar de sua superação. E é por isso também que o filósofo fala de um adentramento na metafísica. Para ele, faz-se necessário desconstruir a metafísica para expor os motivos da entificação e o encobrimento da diferença entre o ente e o ser, o que significa dizer, demonstrar porque a metafísica ao igualar ente e ser não pensa o mesmo o ser, isto é esqueceu o ser, pensando apenas o ente.
A partir de sua intuição a respeito da diferença ontológica, isto é, da fundamental distinção entre ser e ente, Heidegger se dá conta de que toda a história da metafísica é a história da entificação, da objetificação do ser, através, por exemplo, de conceitos como essência, substância, alma, animal racional, cogito, subjetividade, mente, super-homem, vontade de poder etc. São todas tentativas de catalogar o homem, de classificar e etiquetar o ser, equívoco em que incorreu o próprio Nietzsche, pretenso ‘destruidor’ da metafísica.
Com o desvelamento do ser, realizado por Heidegger, é possível realizar a superação da metafísica enquanto instância objetificadora do ser, já que o ser é, agora, projeto, movimento, possibilidade, e não ente acabado, como os demais entes da natureza.
Se o ser é movimento, diferença, não mais é possível sustentar a busca pelo uno, pela identidade, característica da metafísica. Se o ser é movimento e se tende para o nada, em sua inexorável condição de ser-para-a-morte, impossível defender uma idéia de infinitude, existencial ou de conceitos, como pretendia a metafísica. Sendo então o ser movimento, em seu constante caráter de inacabado, seu caráter de projeto, torna-se indefensável a fundamentação do idealismo de forma e pensamento pretendido pela metafísica. A essência do ser humano é sua existência, projeto inacabado e imperfeito, exatamente por ser incompleto. Com Heidegger surge a fundamental constatação de que o ser do ser humano se dá no acontecer de sua existência, em contato com o mundo, mediado pelo tempo, temporalizado.
O Dasein (cuja melhor tradução possivelmente seja: Ser-aí. Ernildo Stein, por exemplo, a adota) surge através de um processo dinâmico de interação entre ser, mundo e tempo, um círculo positivo que resulta no Dasein, mas não apenas como um produto, e sim como um elemento integrante do próprio processo em si. É o que a figura abaixo procura expressar:
Em Heidegger a questão do ser é substituída pela compreensão do ser. Neste momento se dá a conexão entre ser e ser-aí (Dasein), isto é, acontece o modo de compreender o ser. O filósofo brasileiro Ernildo Stein, especialista em Heidegger, diz que ” (…) o ser faz parte do modo de ser do ser humano”, o que faz surgir o conceito de Ser-aí (Dasein). O Dasein em Heidegger representa o aí do ser, portanto, o ser-aí. Dito de outra forma: é preciso operar com o conceito de ser do ser-humano, e este ser do ser-humano é o lugar de sua compreensão, antes mesmo de se acessar o ser-humano enquanto ente.
No Livro que resgata palestras de Heidegger em Zollikon, na Áustria (Seminários de Zollikon), o filósofo, antes de iniciar uma de suas preleções, elabora no quadro um esboço, um desenho extraordinariamente simples que exprime com clareza a diferença ontológica, e que mostra o ser em sua liberdade, indefinição e possibilidades, é a própria representação do Dasein, do animal ainda não catalogado. Apesar de não reproduzir exatamente o gráfico elaborado por Heidegger, o desenho abaixo a ele assemelha-se e serve para ilustrar o que o filósofo quis mostrar:
Como fica patente neste esboço de Heidegger, o ser é movimento, projeto, devir, possibilidades, enfim, e seu único ponto fixo de certeza é o de ser-para-a-morte. Nesta espécie de movimento incerto e constante, o Dasein é incatalogável, isto é, quando se pensa haver atingido sua “essência”, o ser-ele-mesmo, o Dasein já não mais está lá, se movimentou, não é mais o mesmo.
Daí a inspiração tomada de Heidegger pela filosofia existencialista, de J-P. Sartre (1905-1980) e M. Merleau-Ponty (1908-1961), muito embora o próprio Heidegger não desejasse vincular sua filosofia com o movimento existencialista. Olhando para este desenho é fácil imaginar como Sartre concluiu que o homem está condenado a ser livre, ou que o início e o fim do homem é o nada, apenas com sua existência entre eles.
Este esboço mostra, de forma contundente, o caráter de dependência do ser humano do mundo, do tempo. A construção de Heidegger assinala toda a mundanalidade e temporalidade do homem, do ser, exatamente porque revela o caráter de inacabamento e incompletude do ser humano. A tentativa do homem em completar a si mesmo, no contato com o mundo e dentro de um horizonte de tempo, é que irá formar o ser humano, que, no entanto, continuará sempre inacabado.
O homem é praticamente igual a todo o restante da natureza, dentro de uma perspectiva darwinista. Todavia, ao mesmo tempo, é extraordinariamente diferente. Isto porque o homem é apenas um organismo um pouco mais complexo que os demais organismos vivos da natureza que, ao contrário destes demais organismos, é sempre inacabado.
E exatamente isto faz um universo de diferença. O inacabamento do homem o livra de qualquer determinismo, seja ele de caráter mitológico, religioso ou metafísico. O estado de não acabado o condena a ser livre, coloca antes e no final de sua existência o nada. Sua existência é o tudo. Como aponta Heidegger, “a essência do homem é sua existência” .
Sobre o desenho, Heidegger expressou o seguinte:
“A finalidade deste desenho é apenas mostrar que o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente presente num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si. Ao contrário, este existir consiste de ‘meras’ possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão e pelo tato. Todas as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na Psicologia e Psicopatologia, devem desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma visão completamente diferente. A constituição do existir humano a ser considerada daqui em diante se chamará ‘Da-sein’ ou ‘ser-no-mundo’ (…) Entretanto, este Da não significa, como acontece comumente, um lugar no espaço próximo ao observador. O que o existir como Da-sein significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira. O Da-sein humano como âmbito do poder-apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma, em nenhuma circunstância, algo passível de objetivação”.
Heidegger se preocupou, portanto, em estabelecer as bases para uma nova concepção de ser humano e para a realização de suas potencialidades. O filósofo quis estabelecer uma nova plataforma, agora não-fixa e, portanto, não-metafísica, de onde fosse possível analisar o ser esquecido do ente, isto é, uma nova plataforma para se pensar o ser humano. Esta plataforma não-fixa está baseada na diferença ontológica, isto é, no movimento, na abertura do ser. A partir disto, a abertura do ser do entre, um universo de possibilidades se abre.
Esta visão, esta intuição, de Heidegger percorre todo seu pensamento, de Ser e Tempo até Tempo e Ser. Como mostra o filósofo brasileiro Ernildo Stein, a obra de Heidegger revela uma unidade. Apesar das diferenças entre o Heidegger I, II e III, o filósofo parece perseguir, coerentemente, um único pensamento, isto é, evidenciar na tradição filosófica o imperdoável esquecimento do ser, e fundamentar a superação deste esquecimento através da revelação da diferença ontológica.
Na perseguição a estes objetivos, Heidegger consegue, de maneira original, e pela primeira vez, estabelecer a via de superação da metafísica. Superação da metafísica enquanto uma tentativa de objetivação do ser. Heidegger realizou esta superação acentuando o caráter de finitude da existência humana e o mundo de possibilidades que é sua trajetória, dado seu caráter de abertura, de projeto, de projeção, de inacabamento. A essência do homem é sua existência, irá sustentar o filósofo alemão, daí sua liberdade.
Ao demonstrar o mundo de possibilidades que marca a trajetória humana, Heidegger também revela um novo mundo de possibilidades para a filosofia. Heidegger abre uma passagem, destrava uma tranca, descerra uma cortina, abre um portal.
O filósofo alemão, no entanto, não aponta caminhos ou direciona caminhadas, apenas abre a passagem. Heidegger não constrói uma filosofia do agir humano – ética –, ou uma teoria do conhecimento – epistemologia -, ou uma filosofia política. Não é este seu objetivo. Seu objetivo é sim superar um obstáculo, retirar uma barreira que impedia o pensamento ocidental de prosseguir, de ir adiante, de seguir em frente.
Ao fundamentar seu pensar III, Heidegger apenas diz “o mais grave é que ainda não pensamos”. Com sua denúncia, o filósofo alemão não pretende dirigir o pensamento para uma determinada direção, somente mostra que pensar é preciso. Um pensar que vá além do pensar neuro-biológico (pensar I) e do pensar lógico-científico (pensar II), mas que vá além não para um destino específico, um pensar que apenas pense. A passagem está aberta, basta apenas que se escolha o caminho e caminhe. Qual o caminho correto a seguir? Heidegger não se preocupou em estabelecê-lo, apenas abriu a passagem.
Martin Heidegger em sua busca de superação da metafísica deixou duas grandes contribuições para o pensamento ocidental: (a) a idéia de abertura do ser, do ser como movimento e, portanto, desprovido de uma natureza intrínseca, de uma essência fundamental e, por conseguinte, (b) a noção de mundo sem uma essência imutável, também sem uma natureza intrínseca a ser descoberta e revelada.
Com os escritos de Heidegger, pode-se finalmente buscar a superação da Metafísica.
Marcelo Lorence Fraga
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