WITTGENSTEIN

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Wittgenstein

 

Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951) foi um filósofo austríaco. Nasceu em Viena, como oitavo filho de um importante industrial do Império austro-húngaro.

Enquanto criança, por conta das relações sociais da família, conviveu em um ambiente de rica atmosfera cultural. O compositor alemão Johannes Brahms, por exemplo, era frequência constante nas recepções promovidas pelos pais de Wittgenstein.

Boa parte de sua educação juvenil foi realizada em casa. Em 1906, Wittgenstein inicia estudos de engenharia mecânica em Berlim. Em 1908 ingressa na Universidade de Manchester, com interesse em engenharia aeronáutica.

Após estudar engenharia, o jovem Wittgenstein foi acompanhar aulas de filosofia em Cambridge, por influência de Gottlob Frege (1848-1925), lógico, matemático e filósofo alemão, e um dos criadores da lógica moderna.  Frege, com quem Wittgenstein vinha se correspondendo acerca de assuntos de lógica e matemática, e a quem visitara em 1911, recomendou que ele fosse estudar com o importante filósofo britânico, Bertrand Russell (1872-1970).

Em 1914, alistou-se como voluntário no exército austríaco. Ferido, tornou-se prisioneiro de guerra na Itália. Na prisão, teria rascunhado os esboços de uma de suas principais obras, o Tractatus logico-philosophicus, resultado de seus debates em Cambridge com Russell.

Após o falecimento de seu pai, ocorrido em 1919, renunciou à fortuna lhe deixada de herança e assumiu o cargo de professor em uma escola primária na Baixa Áustria. Chegou a elaborar um dicionário de ortografia para o ensino infantil. Teve, no entanto, problemas de relacionamento com os alunos, em razão de seu estilo intenso e rigoroso de aulas, demonstrando pouca paciência com as crianças que não conseguiam acompanhar seus raciocínios. Pais de alunos pediram seu afastamento e ele decidiu abandonar a carreira de professor.

Trabalhou como assistente de jardineiro em um monastério nas proximidades de Viena. Pensou na possibilidade, não levada adiante, de seguir a vida monástica.

Em Cambridge, frequentando as aulas de Bertrand Russell, figura de destaque no cenário intelectual daquele momento, surge um episódio marcante na trajetória filosófica de Wittgenstein.

Ludwig Wittgenstein sentava-se sempre ao fundo da sala e manifestava-se muito pouco durante as aulas. Certo dia, após uma das lições de Russell, aproximou-se da mesa do professor. Disse estar inseguro em relação ao seu interesse por filosofia e por lógica. Afirmou ao professor contar também com atração por engenharia aeronáutica. Estava indeciso acerca do que estudar e pediu o auxílio de Russell quanto ao caminho a ser escolhido. Russell, um pouco surpreso com a aproximação do aluno, que pouco interagia nas aulas, teria dito que não havia naquele momento como lhe orientar em relação à questão, já que não possuía uma boa noção dos interesses e qualificações do aluno. Pediu-lhe então que preparasse um ensaio, um texto, sobre um dos temas abordados em sala de aula, um assunto de sua livre escolha. Após a leitura desse trabalho, Russell lhe diria alguma coisa.

Assim foi feito. Wittgenstein elaborou seu texto e o entregou ao Professor. Algum tempo depois, um impressionado Russell chama o aluno e lhe diz: “Li seu ensaio. Penso que o Senhor não deva ir estudar engenharia…”.

Iniciava-se ali uma importante relação de trabalho e a filosofia ganhara um expressivo e marcante pensador em sua história.

As duas principais obras de Wittgenstein são: o Tractatus logico-philosophicus, publicado no idioma alemão em 1921, e as Investigações Filosóficas, publicada postumamente em 1953, numa edição bilíngue alemão/inglês.

Na filosofia moderna e na contemporânea, não é incomum segmentar o pensamento dos autores em etapas ou fases. Assim aconteceu, por exemplo, com Karl Marx: o jovem Marx ou o velho Marx; com Martin Heidegger: Heidegger I ou Heidegger II, com Immanuel Kant: Kant da primeira edição da Crítica da Razão Pura ou Kant da segunda edição, entre outros.

Em geral, esta classificação ou separação é adotada quando se verifica no pensador uma espécie de ruptura, transformação, mudança significativa em seu pensamento, em seus conceitos básicos, mas mesmo um amadurecimento claro e uma consolidação de suas bases teórica. Uma designação assim visa orientar o leitor, o estudante, o estudioso, em relação a qual fase, ou momento intelectual, do pensamento daquele autor se está trabalhando.

Com Wittgenstein, isto também se dá, e de forma acentuada. Costuma-se designar e segmentar nos livros e dicionários de Filosofia os trabalhos do austríaco em: Wittgenstein I e Wittgenstein II.

Wittgenstein I é o do período da obra Tractatus logico-philosophicus. Wittgenstein II é o das Investigações Filosóficas.

Isto porque há no pensamento do filósofo austríaco uma sensível ruptura entre o arcabouço conceitual e as perspectivas utilizadas em uma obra e a outra

A compreensão dessa segmentação em Wittgenstein é muito importante e fundamental, já que é quase como se fossem dois pensadores diferentes. Então, quando se comenta o Wittgenstein I, o do Tractatus, se está analisando um esquema conceitual, uma abordagem. De outro lado, quando se debate o Wittgenstein II, se está apreciando, avaliando, um outro conjunto de conceitos, uma nova abordagem.

O contexto intelectual-filosófico em que surge o pensamento de Wittgenstein é o de uma tentativa de superação da metafísica pela filosofia através do ressurgimento ou resgate da lógica, no final do século XIX e início do século XX. Uma figura-chave para esse movimento foi o filósofo e lógico alemão Gottlob Frege, que de certa forma revolucionou a Lógica, até então ainda bastante fundamentada na lógica aristotélica. Juntamente com Bertrand Russell, Frege funda e desenvolve uma corrente de pensamento denominada filosofia analítica. A idéia central da filosofia analítica é a aplicação da lógica e da matemática na análise do significado dentro da linguagem e, a partir daí, possibilitar com que se possa chegar à certeza.

O pensamento do austríaco Ludwig Wittgenstein influenciou significativamente a filosofia analítica da linguagem, tanto em sua vertente da semântica formal (influência do Wittgenstein I), quanto na vertente pragmática (influência do Wittgenstein II). Mais do que isso, os trabalhos do segundo Wittgenstein, especialmente nas Investigações Filosóficas, podem ser considerados determinantes no seio da chamada virada lingüística da filosofia (linguistic turn, em inglês). Wittgenstein é considerado por alguns analistas da História da Filosofia como um dos mais importantes pensadores do século XX, talvez rivalizando a disputa desse posto com Martin Heidegger.

Vejamos o primeiro Wittgenstein, ou Wittgenstein I, o do Tractatus logico-philosophicus.

Na filosofia da época do Tratactus, o jovem Wittgenstein revela uma preocupação inicial em buscar unificar a linguagem em uma única estrutura lógico-formal, em que toda ela (a linguagem) seria decomponível em elementos ou unidades simples, tais como os nomes (designações), que seriam igualmente reproduções dos objetos, constituintes elementares da realidade.

Wittgenstein, no Tratactus, trabalha a idéia de que as análises visam explicitar a função afigurativa da linguagem, isto é, a linguagem deve ser uma cópia fiel dos fatos no mundo. A estrutura do próprio mundo é dada juntamente com a linguagem, e não é somente reproduzida pela linguagem. Nesse sentido, a filosofia, enquanto análise de linguagem, reflete a essência do mundo.

O mundo, na visão de Wittgenstein I, é constituído de um conjunto de fatos. Os seres humanos formam imagens desses fatos. Boa parte destas imagens são, obviamente, linguísticas e se tornam proposições.  Imagens linguísticas, ou proposições, por extensão, possuem uma forma e um sentido e pretendem um valor, uma condição, uma aspiração de verdade. Nessa pretensão de verdade, podem ser verdadeiras ou falsas.  

Na perspectiva adotada por Wittgenstein I, somente possuem sentido as proposições que correspondem, de fato, às imagens do mundo, passíveis de serem verificadas acerca de sua verdade ou falsidade. Por conseguinte, proposições oriundas da metafísica, da psicologia, da estética, da teologia, da ética, entre outras, seriam privadas de sentido.

Para Wittgenstein, a exemplo de seu mentor Bertrand Russell, a natureza da linguagem é “enganadora”, isto é, a forma gramatical de um enunciado poderá esconder ou torcer sua real estrutura lógica, não revelando a verdade contida na sentença. A função da filosofia, a partir disso, é analisar estas formas gramaticais dos enunciados, reorganizando-os à luz da lógica e, nesse processo, revelando a verdade e dissolvendo os problemas filosóficos.

O Wittgenstein I pensava que a reunião de problemas filosóficos formava um todo e que esse todo estava representado pela investigação da possibilidade dos significados. A seguinte sentença de Wittgenstein representa essa idéia: “Tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente, e aquilo sobre o que não se pode falar deve-se calar”.

Para o Wittgenstein do Tractatus, então, tudo que pode ser pensado também pode ser dito e os limites da linguagem são os limites do pensamento. Para ele, uma análise apropriada da estrutura dos termos utilizados na construção das sentenças representará esse limite e, neste processo, solucionará ou diluirá todos os problemas filosóficos. Em sua visão, os problemas mais fundamentais da filosofia decorrem de mal-entendidos linguísticos. A análise crítica da linguagem empreendida no Tractatus visa dissolver então estes mal-entendidos. Visa equacionar os problemas filosóficos.  

A importância de Wittgenstein para o contexto filosófico do momento é então percebida. O Tractatus torna-se o modelo em torno do qual a matriz disciplinar da filosofia analítica passa a ser modelada. O prefácio ao Tractatus pretende que a filosofia da linguagem seja, finalmente, a verdadeira filosofia primeira, tão perseguida desde Platão e Aristóteles.

Wittgenstein chega mesmo a acreditar, à época, que havia resolvido todos os problemas filosóficos existentes. Nada mais restara para ser analisado. Ele diz no prefácio do Tractatus: “(…) a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas [filosóficos].”

O Austríaco praticamente abandona a filosofia àquela altura, dedicando-se a outras atividades por quase dez anos, período em que foi professor primário, jardineiro e arquiteto (projetou e auxiliou na construção da casa de uma de suas irmãs).

Seu retorno à Filosofia se dá a partir dos contatos com os integrantes do chamado Círculo de Viena, que sob a coordenação de Moritz Schlick (1882-1936), fundou um sistema filosófico denominado de positivismo lógico. Schlick e o seu grupo ficaram impressionados com as proposições contidas no Tractatus e sua abordagem de uma teoria lógica dos símbolos e da linguagem, e passaram a contatá-lo regularmente a partir de 1924 e até 1932, quando se encerra sua ligação com os integrantes do Círculo.

Curiosamente, no contexto de seus debates com os integrantes do grupo de Schlick, Wittgenstein vai aos poucos começando a se aperceber que sua obra continha erros e equívocos graves, e inicia as reflexões e anotações que o levariam a escrever sua segunda importante obra: as Investigações Filosóficas.

Em 1929, por influência de um jovem britânico estudioso de matemática e filosofia da matemática, Frank P. Ramsey (1903-1930), Wittgenstein decide retornar à Cambridge e obter o doutoramento em filosofia, apresentando para tanto o próprio Tractatus como sua tese, sob a orientação de Ramsey. 

A interação intelectual entre Ramsey e Wittgenstein foi formidável. Os dois tornam-se amigos, e Ramsey auxilia a Wittgenstein na correção de alguns erros havidos na primeira edição do Tractatus no idioma inglês.

Após obter o doutoramento, a partir de 1930, Wittgenstein começa a lecionar em Cambridge. O passamento de Frank Ramsey naquele ano, devido a complicações surgidas em uma cirurgia de estômago, com apenas 26 anos, abala Wittgenstein que, de certa forma em homenagem ao amigo, decide rever seriamente o que considerava equívocos contidos no Tractatus, e que ficaram para ele evidentes após os debates com Schlick e o Círculo de Viena e com Ramsey.

Wittgenstein II. O Wittgenstein das Investigações Filosóficas.

Se o trabalho do primeiro Wittgenstein está centrado na análise da estrutura lógica da linguagem, sua abordagem posterior, retratada nas Investigações Filosóficas, dá ênfase na linguagem enquanto esforço de comunicação humana.

Na revisão dos escritos e teses do Tractatus, Wittgenstein começa a questionar a noção de significado como referência às coisas em si, bem como inquirir a própria função denotativa da linguagem, isto é, que descrever a realidade seja de fato sua principal função.  

Esta espécie de auto-revisão de seus trabalhos foi levada adiante nas lições e estudos em Cambridge de 1930 a 1947, culminando com a conclusão das Investigações Filosóficas, obra que foi publicada postumamente em 1953.

Nas Investigações, Wittgenstein busca se utilizar de um método e estrutura conceitual diversos daqueles contidos nos Tractatus. Do ponto de vista metodológico, o segundo Wittgenstein abandona a pretensão de cientificidade lógica contida em seu primeiro trabalho. Do ponto de vista conceitual, a linguagem deixa de ser concebida como uma estrutura de nomenclaturas que designa as coisas e os objetos com o objetivo de configurar ou descrever o mundo. Wittgenstein decide abandonar a idéia de buscar por uma “essência” da linguagem.

Em Wittgenstein II, a linguagem passa a ser analisada pelo seu “valor de uso”. O nome abstrato (designação) das coisas representa agora apenas uma “afinidade”, uma “semelhança”, com os objetos designados, e não mais sua representação exata e acurada. O que irá definir seu significado é o uso. “Quando” e “como” utilizo as designações é que irão estabelecer se o significado foi adequado ou não (regras de uso).

Essa nova abordagem irá determinar que o núcleo de qualquer teoria do significado e do entendimento estará calcado na prática pública (coletiva) do proferimento e em torno de tudo que torna esta prática possível, resultando assim numa avaliação totalmente nova da natureza da linguagem, desembocando também numa nova perspectiva de filosofia da mente e mesmo de filosofia da subjetividade.

Esta nova abordagem dificulta a concepção de uma “linguagem privada”, colocando em xeque toda a abordagem subjetiva da mente. Para defender sua nova concepção, Wittgenstein utiliza como argumento as sensações interiores do ser humano – tal como a sensação de dor – e a tarefa de expressá-las lingüisticamente:

“O que se passa com a linguagem que descreve minhas vivências interiores e que apenas eu próprio posso compreender? Como designo minhas sensações com palavras? – Assim como o fazemos habitualmente? Minhas palavras que designam sensação estão ligadas a minhas manifestações naturais de sensação; – neste caso, minha linguagem não é ‘privada’. Um outro poderia compreendê-la como eu. – Mas como se daria se eu não possuísse manifestações naturais de sensação, mas apenas sensação? E, pois, associo simplesmente nomes e sensações e emprego esses nomes em uma descrição (…)”

 

Segue Wittgenstein:

“‘(…) se os homens não manifestassem suas dores (não gemessem, não fizessem caretas, etc.)? Então não se poderia ensinar a uma criança o uso das palavras ‘dor de dente’. Ora imaginemos que a criança seja um gênio e descubra  por si própria um nome para a sensação! – Mas então, é claro, não poderia fazer-se entender com esta palavra. Assim, pois, ela compreende este nome, mas não pode ensinar seu significado a ninguém? – Mas o que significa o fato de ‘ter denominado sua dor’? – Como fez para denominar a dor?! – Quando se diz: ‘Ele deu um nome à sensação’, esquece-se o fato de que já deve haver muita coisa preparada na linguagem, para que o simples denominar tenha significação.” (IF 256-260, pp. 100-101).

 

Em outras palavras: como descrever corretamente, por exemplo, uma dor de cabeça para alguém que nunca tenha tido a sensação de dor de cabeça? Muito possivelmente, essa descrição ficasse apenas próxima do que, de fato, o indivíduo a ela submetido estivesse sentindo.  Desse modo, a figura de um sujeito isolado como sendo capaz de construir para si uma rede simbólica de significados arbitrários, isto é, uma linguagem privada, fica afastada.

Para o Wittgenstein das Investigações, a linguagem humana, acima de tudo, reside na capacidade de se estabelecer uma interação com um outro sujeito, em um processo de socialização de convenções conceituais e designativas. O pressuposto mais fundamental desta concepção é que a linguagem se apoia sobre um acordo prévio entre os falantes, isto é, sobre um sistema de normas e convenções sociais.

A linguagem, portanto, não é um fenômeno subjetivo (linguagem privada), mas um acontecimento intersubjetivo, que resulta da formação das comunidades linguísticas e que terá por base em sua constituição um processo de internalização de normas e papéis pelos falantes.

Disso decorre que não existe mais só uma linguagem. Mas muitos tipos de linguagem, no que o Wittgenstein II designa de “jogos linguísticos”. Dentro do conceito de jogos  linguísticos (ou jogos de linguagem), as condições de uso de uma expressão dependem da situação prática e do tipo de prática comunicativa utilizada (condições de uso e regras de uso). Os jogos de linguagem, para Wittgenstein estão associados a “formas de vida”. Como existem potencialmente infinitas possibilidades de forma de vida (assim entendida a forma como um grupo social decide viver), existiriam também, potencialmente, infinitos jogos de linguagem.

Para Wittgenstein a linguagem está centrada na relação indissociável entre a palavra, o pensamento e estados mentais, em que as palavras não podem ser compreendidas fora do contexto das atividades humanas, contexto este exatamente onde a linguagem e seu uso são constituídas. Assim, jogo de linguagem pode ser entendido como o processo de interação entre as palavras e as circunstâncias interpessoais de sua constituição.

Dentro desta perspectiva de Wittgenstein, para que se possa compreender a significação das expressões lingüísticas é necessário que se analise o contexto de sua utilização e a rede de normas e práticas sociais que coordena o uso dos jogos de linguagem. Deste modo, a problemática da significação das palavras precisa ser deslocada de um enfoque puramente semântico para uma abordagem tipicamente pragmática da linguagem.

A partir disso, a importância dos escritos do segundo Wittgenstein para a consolidação da virada linguístico-pragmática da filosofia é expressiva.

Os estudos de Wittgenstein II declaram uma nova perspectiva para o tratamento da linguagem pelo pensamento ocidental. Uma nova ótica, em que o fundamento da linguagem está, simplesmente, em seu próprio uso. O fundamento da linguagem não está em algo exterior à linguagem concreta, mas em sua própria práxis de uso.  Este evento é interpretado por Wittgenstein como sendo uma unidade entre a linguagem e as atividades de uso a ela associadas. Esta totalidade é por ele denominada então de jogo de linguagem.

A partir da idéia de Wittgenstein de jogos de linguagem, apoiada fundamentalmente no caráter intersubjetivo, prático e sócio-histórico do uso da linguagem, coloca-se em xeque a figura de um sujeito isolado como capaz de construção de uma rede simbólica de significados arbitrários, isto é, de uma linguagem.

Logo, o ponto central da argumentação proposta por Wittgenstein contra a possibilidade de uma linguagem privada, de uma linguagem que somente possa ser entendida pelo indivíduo ou pela consciência individual que a domina, está na fragilidade de fundamentar a existência de regras privadas a que esteja tal linguagem submetida.

No caso do exemplo da ‘dor de dente’ proposto pelo próprio Wittgenstein, fica evidente que não há qualquer forma de exame possível quanto à correção no uso, exclusivamente pela consciência do indivíduo, de uma determinada expressão para designar a sensação de ‘dor de dente’. Desta forma, o uso desta determinada expressão de cunho privativo não conquista concretude no mundo real, já que não permite qualquer forma de aferição quanto à sua correta, ou incorreta, utilização.

Trazendo de volta o conceito de Wittgenstein de jogo de linguagem, somente com a utilização de uma determinada expressão, em um determinado contexto de ação comunicativa, no âmbito de uma determinada comunidade lingüística, é que se poderá avaliar seu uso adequado, isto é, somente no universo pragmático de seu uso, na forma compartilhada com os demais integrantes desta comunidade de fala, é que esta tal expressão adquirirá sentido.

Com sua argumentação em torno da idéia de jogos de linguagem e sobre a impossibilidade de uma linguagem privada, Wittgenstein, em sua segunda fase, configura uma nova imagem em torno da filosofia da linguagem, que ele próprio ajudara a construir com o Tractatus.

O segundo Wittgenstein estabelece também aí uma crítica e um rompimento radical com toda a tradição ocidental no que se refere à teoria do conhecimento, já que para a epistemologia moderna (anterior a Wittgenstein II), baseada fundamentalmente na subjetividade inerente à relação sujeito-objeto, isto é, do sujeito que toma contato com um determinado objeto e conhece-o, e posteriormente reconhece-o de forma imediata, a idéia de uma linguagem privada torna-se imprescindível.

A idéia de Wittgenstein de jogo de linguagem permite que se veja a linguagem de uma forma antiessencialista e antifundacionista, isto é, não como um elo metafísico de ligação entre o sujeito e a realidade, mas como apenas mais uma ferramenta desenvolvida pelo ser humano no seu processo de adaptação e sobrevivência ao ambiente externo.

Junto à idéia de jogo de linguagem vem a noção de uma linguagem como produto de uma ação social, de um processo comunicativo intersubjetivo, em contraposição à idéia tradicional, apoiada na noção de linguagem privada, da linguagem como produção de um sujeito solitário em face de um objeto, em uma espécie de solipsismo metafísico, que exigiria da linguagem ser fruto ou de uma dádiva divina, ou de um processo espetacular e miraculoso de formação de insights sobre a realidade.

Como mostra Manfredo A. de Oliveira, aí ocorre a importância do segundo Wittgenstein no horizonte do pensamento ocidental: “Exatamente aqui se dá a mudança de paradigma: o horizonte a partir de onde se pode e deve pensar a linguagem não é o do sujeito isolado, ou da consciência do indivíduo, que é o ponto de referência de toda a filosofia moderna da subjetividade, mas a comunidade de sujeitos em interação.” (1997, p. 53).

Ora, esta mudança de paradigma está na mudança de orientação em relação à visão acerca da linguagem e de sua função. O paradigma anterior estava orientado pela pergunta acerca do significado das palavras, de forma a, através do exame rigoroso de seu conteúdo e significação, fazendo uso para tanto da análise lógica e semântica, fazê-la capaz de representar acuradamente os objetos no mundo e, em última instância, o próprio mundo.

Já em seus escritos posteriores, Wittgenstein avançou para uma posição em que a linguagem, agora sob o conceito de jogos de linguagem, torna-se um complexo de ações lingüísticas, e também extralingüísticas, que se desenvolvem em um contexto concreto, praticadas por sujeitos que interagem visando entendimento. Dessa forma, a linguagem não pode mais ser uniformizada em uma única estrutura lógica e formal. A linguagem agora passa a ser vista  “como práxis comunicativa, mediadora de intersubjetividade” , nas palavras de Manfredo A. de Oliveira.

A conseqüência direta desta mudança de paradigma trazida por Wittgenstein para a filosofia da linguagem é uma passagem da esfera semântica de análise para o âmbito da pragmática. Se antes a pergunta a ser feita era pela significação das expressões lingüísticas, agora, a indagação deve ser feita em torno dos usos e das funções práticas das palavras dentro de um determinado contexto de interação social entre indivíduos intersubjetivamente articulados entre si pelo uso da linguagem.

A partir da nova imagem construída pelo segundo Wittgenstein para a linguagem, que caracterizou como já se disse uma forte ruptura com a visão anterior de linguagem (proposta pelo próprio Wittgenstein), pode-se inferir que a empresa de buscar algum tipo de “essência” para a linguagem torna-se infrutífera, já que não mais se pode sustentar a idéia de uma só linguagem, composta de proposições universais, ou universalmente válidas, mas sim consolida-se a noção de que existem muitos tipos de linguagem, articuladas entre si sob a forma de jogos de linguagem.

Além disso, para o Wittgenstein dessa fase, um nome em uma linguagem ou uma proposição indicam uma mera semelhança ou afinidade entre objetos e o que irá determinar o significado deste nome ou proposição será o seu uso e as regras de uso – como e quando são utilizados os nomes ou as proposições.

Assim, com o segundo Wittgenstein, e o conceito de jogos linguísticos e a abordagem pragmática da linguagem, em que esta se converte apenas em uma espécie de ferramenta ou utensílio que o ser humano utiliza para sua adaptação e sobrevivência no mundo, se torna possível defender uma visão naturalizada da linguagem e, por extensão, uma visão naturalizada do próprio ser humano.

Daí a influência fundamental de Wittgenstein, especialmente do segundo Wittgenstein, para toda a filosofia posterior. E não apenas para a filosofia, mas para outros tantos ramos do conhecimento humano, tais como a pedagogia, a sociologia e a psicologia. Disso deriva que Wittgenstein possa ser considerado pelos analistas da História da Filosofia como talvez o filósofo  mais importante do século XX.

 

Marcelo Lorence Fraga

Mestre em Filosofia – PPGF/PUC-RS

 

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

 

COSTA, Cláudio. Filosofia da Linguagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

 

D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e continentais. Guia à filosofia dos últimos trinta anos. São Leopoldo: Unisinos, 2002.

 

MARCONDES, Danilo. A Pragmática na Filosofia Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

 

OLIVEIRA, Manfredo A. de. Sobre a fundamentação. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

 

______________________. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.