Características da Metafísica
Ou a Metafísica e a Finitude
A metafísica, no âmbito do pensamento filosófico, pode ser considerada como uma espécie de busca por verdades e conceitos absolutos, a-históricos, atemporais e universais.
De certa forma, isto representa a continuação do projeto platônico, no sentido de uma busca pela segurança e pelo conforto dos conceitos controladores da metafísica, para usar a expressão de Jürgen Habermas.
No vocabulário do filósofo brasileiro Ernildo Stein, estes conceitos controladores também podem ser chamados de princípios epocais. Os princípios epocais são paradigmas construídos por pensadores e que se tornam referências com capacidade de influenciarem decisivamente em outras instâncias da cultura (conhecimento, ética, estética, política, arte etc).
Entre estes princípios epocais estariam, por exemplo, o mundo das idéias de Platão, a substância em Aristóteles, o ipsum esse subsistens (o Ser que subsiste na sua plenitude, ou Deus) do pensamento medieval, o cogito cartesiano, os juízos sintéticos e juízos analíticos em Kant, o espírito absoluto em Hegel, a vontade de poder em Nietzsche, o Dasein (Ser-aí) em Heidegger.
Poderiam ser acrescentados aqui também os conceitos de mente, subjetividade e natureza humana como princípios epocais da modernidade, a partir de Locke, Hume, Descartes, Kant e Hegel.
Além da constituição (ou a tentativa de constituição destes conceitos controladores ou princípios epocais), a metafísica, e a própria filosofia, de certa forma, se estruturam em torno de quatro aspectos básicos:
1.) Pensamento da identidade: a filosofia herda do mito o desejo de explicar e justificar o todo. A multiplicidade de eventos e coisas, apesar de constituírem-se entidades particulares, podem ser compreendidos como fazendo parte de um único todo;
2.) Idealismo: a perspectiva de que há uma forma ideal no pensamento – idéia –, que deve ser perseguida na expressão, na representação. A filosofia terá atingido seu principal objetivo quando efetivamente conseguir representar com perfeição este mundo ideal;
3.) Prima philosophia (Filosofia primeira) como filosofia da consciência: na passagem da metafísica antiga para a moderna, a principal tarefa é explicar como o conhecimento é produzido e reproduzido e de onde advém a autonomia da razão do sujeito. Se na metafísica antiga à filosofia primeira cabia explicar o que é o mundo, na metafísica moderna a prima philosophia transforma-se em fundamentar a mente humana e a consciência de si;
4.) Conceito forte de teoria: na filosofia antiga o auge do desenvolvimento humano seria a vida dedicada à contemplação. O bios theoretikos (vida contemplativa) está acima da atividade do homem de Estado, do médico, ou do pedagogo, por exemplo. Esta relação se dá porque a especulação e contemplação são encaradas como formas de acesso privilegiado à verdade, à verdadeira verdade do mundo e das coisas.
Um quinto aspecto, e talvez seja este o elemento mais fundamental à metafísica, deve ser acrescentado àqueles anteriormente apontados: a noção de infinitude.
A idéia de infinitude na metafísica possui com esta uma relação de perfeita imbricação. Não haveria pensamento metafísico sem o horizonte da infinitude como seu pano de fundo. A infinitude, isto é, a perspectiva de que as verdades possam ser atemporais e a-históricas, perenes e plenamente estáveis, é a pedra fundamental de toda construção metafísica, seja na filosofia, seja na religião ou mesmo no mito.
A infinitude transfere para a filosofia, através da metafísica, a segurança e a confiança no destino, perdidas com o descrédito nas narrativas e explicações mitológicas e teológicas do mundo e das coisas. O infinitismo é o princípio organizador da metafísica ocidental, portanto.
A partir de uma visão metafísica dentro da filosofia, na ontologia buscam-se causas e verdades. Na ética, são buscadas regras que vigorem incondicionalmente, isto é, que sejam universais e infinitas.
A idéia de existência de um conceito forte de verdade oferece um conforto metafísico ao homem. Existem verdades absolutas e universais e, a partir disto, as contingências do processo histórico, da própria existência, são menos ameaçadoras.
A infinitude é a marca principal da metafísica, pois é nela que o ser humano deposita toda a esperança em deixar para trás sua angústia e sofrimento em saber que pertence ao mundo e à história apenas. O peso quase insuportável da faticidade de estar-no-mundo é suavizado pela esperança trazida pela noção de infinitude. E à metafísica, após o mito e a religião, coube a tarefa especial de fundamentar e tornar aceitável, do ponto de vista racional e sistemático, esta infinitude.
À filosofia, quase irmã gêmea da metafísica desde seu nascedouro, coube igual tarefa. Por quase dois mil anos. Tal tarefa, tal encargo, não é mais possível, todavia, à filosofia. Depois de Darwin, de Nietzsche, Freud, de Heidegger, não mais. Houve tempo em que filosofia e metafísica estiveram juntas, trilharam os mesmos caminhos. É hora de separarem-se. É o momento, finalmente, de a filosofia emancipar-se da metafísica. Ultrapassá-la. Mas como?
Ora, somente em uma base de compreensão do caráter de finitude do homem é que se pode construir um pensamento efetivamente pós-metafísico, renovado, onde a obstinada procura pela verdade seja substituída pela luta pela democracia, liberdade, e justiça social. Somente uma filosofia que trabalhe dentro do horizonte da finitude, isto é, que coloque a existência humana no âmbito da história, da transitoriedade e da particularidade, poderá efetivamente levar a filosofia e o pensamento ocidental para além da metafísica.
Para além da metafísica, significa um pensamento renovado, pós-metafísico, que seja consciente da finitude do homem, deixando para trás os esquemas essencialistas e transcendentais, próprios do desejo pela infinitude. Uma filosofia finalmente voltada para o futuro e não apenas para o passado, um pensamento que possa, gradualmente, substituir o equívoco de nos enxergarmos pelo lado de fora do tempo e da história pela busca de uma sociedade antiessencialista, que pense a utopia possível de uma democracia abrangente. Uma sociedade em que a liberdade humana seja tomada não em um sentido metafísico (não-humano, fora do humano), mas como fruto de uma criação inteiramente humana.
Fora, e para além do conforto metafísico, existe a imperfeição, a temporalidade, o inacabamento, a finitude. Mas existe também a riqueza, a inconformidade, a complexidade, o desejo humano, enfim, de constuir o seu próprio futuro, de ser livre. Fora da metafísica não há certezas. Mas há esperança.
Marcelo Lorence Fraga
Mestre em Filosofia
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Estudo Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
________________. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
LOPARIC, Zeljko. O Fim da Metafísica em Carnap e Heidegger. In Boni, Luis A. De (org.). Finitude e Transcendência. Festschrift em Homenagem a Ernildo J. Stein. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: PUCRS, 1995.
RORTY, Richard. Contingência, Ironia e Solidariedade. Lisboa: Presença, 1994.
____________. Verdade e Liberdade: Uma réplica a Thomas McCarthy. In GHIRALDELLI Jr, Paulo. Richard Rorty. A filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999.
____________. Pragmatismo. A filosofia da criação e da mudança. Coletânea de textos organizada por Cristina Magro e Antônio Marcos Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
___________. Diferença e metafísica: ensaios sobre desconstrução. Porto Alegre: EDIPURS, 2000.
___________. Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da interrogação da heideggeriana. Coleção ensaios – política e filosofia. Ijuí: Unijuí, 2001.
Nestor Bizzo Marcelo. Seu texto agora ficou cristalino. A clareza, porém, me levou a uma dúvida: se os princípios controladores na metafísica são “princípios epocais”, “…paradigmas construídos por pensadores e que se tornam referências com capacidade de influenciarem decisivamente em outras instâncias da cultura…”, a infinitude na metafísica seria provisória. Em outras palavras, serão infinitos enquanto durarem… (é isso?)
Prezado Amigo Nestor Bizzo, muito obrigado pela leitura do Ensaio pela ponderação feita. Em relação a tua dúvida, dois são os aspectos a serem abordados: Filosofia e Teoria da Ciência. Primeiro, em relação à Filosofia mais propriamente. A Filosofia nasce com o signo da Metafísica. Foram e são irmãs gêmeas. Ao longo da História da Filosofia, no entanto, a partir dos Pensadores Modernos, mas especialmente com os Contemporâneos, vai ficando evidente que Filosofia e Metafísica se confundem e começa um processo de análise (quase de autoanálise, eu diria), tentando perceber a influência de uma na outra. Aos poucos, os Filósofos vão se dando conta de que é preciso demonstrar o que seja Filosofia e o que seja Metafísica. Dito de outro modo: torna-se importante para os Pensadores Contemporâneos destacar a influência da Metafísica na Filosofia, lançando assim o desafio de sustentar a possibilidade de um Discurso Filosófico mais distante desta influência. Nesse sentido, a idéia de ultrapassagem da Metafísica (a imagem representa a Filosofia finalmente ultrapassando a Metafísica). Neste Ensaio, tentei expor algumas das características centrais da Metafísica, mas que também o são da Filosofia, pelo que coloquei acima. E acrescentei a estas características, que são mais ou menos de consenso entre os analistas, a marca da Infinitude (ou da não aceitação/consideração da idéia de Finitude).
Os princípios epocais são uma espécie de Paradigmas Filosóficos (aí é que entra a questão da Teoria da Ciência, mas depois vou para ela). Em minha análise levada adiante no Ensaio, pretendo sugerir que a marca da Infinitude seja um princípio epocal quase perpétuo da Metafísica. E, por extensão, de boa parte da Filosofia, não apenas de um Filósofo específico, mas de quase toda ela. A partir de Heidegger (de outros Pensadores também, mas creio que especialmente com ele), em Ser e Tempo, que é de 1927, se começa a jogar luz na questão, e dá-se o início, tímido, da tentativa de construção de um Pensamento Filosófico calcado na idéia de Finitude (Finitude do ser humano, das coisas) e, de certa forma (esta é a minha ‘tese’ no Ensaio), a elaboração de um Pensamento Pós-metafísico, ou da Filosofia apartada, finalmente, da Metafísica.
Segundo aspecto: Teoria da Ciência. Com Thomas Kuhn, surge de forma mais clara a análise da importância dos Paradigmas no desenvolvimento científico e, por extensão, no desenvolvimento do próprio pensamento humano. Na visão de Kuhn, é partir do surgimento de um conceito sólido e de consenso na Ciência (o Paradigma), é que se avança para outros níveis de conhecimento. Um paradigma novo é buscado. O novo paradigma substitui o antigo. Karl Popper e meu ex-professor Araújo Santos entendem um pouco diferente. Concordam com parte da visão de Kuhn, mas entendem que não necessariamente o paradigma novo substitui, extingue o paradigma anterior. Eles podem coexistir.
A partir disso, tento responder a tua inquietação da seguinte forma: a Infinitude se constitui num paradigma central da Metafísica. Sem este paradigma, ausente ele, a Metafísica desaparece, não se sustenta. Inexiste. Dito de outra maneira: não teria sido possível construí-la. Já em relação à Filosofia, sim este paradigma pode (e deve) ser ultrapassado, abandonado, tornando esta Área de Conhecimento mais adequada e capacitada a pensar e oferecer alternativas aos desafios de nosso Tempo, à luz do horizonte da finitude. Todavia, dentro da idéia de paradigmas coexistindo (Karl Popper e Araújo Santos), também haverá pensamento filosófico ainda sob a influência da Infinitude, que busque o apoio e a reafirmação dos conceitos controladores da Metafísica.
Espero haver ajudado. Peço sua permissão para publicar no Blog Esboços Filosóficos a sua dúvida e esta minha tentativa de resposta a ela. Provavelmente ela poderá auxiliar outros Leitores com inquietações semelhantes. Mas uma vez muito obrigado. Um Grande Abraço Amigo!